segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

À Procura de Deus


Quando todas as portas se fecham, quando os homens começam a descrer dos seus governantes, quando se torna mais evidente a transitoriedade das coisas, quando tudo parece ruir à sua volta, os homens voltam-se para  Deus e para o sobrenatural. Foi assim nas guerras, nas pestes, nos cataclismos e nas fomes que ciclicamente assolaram o mundo. O fervor religioso floresceu sempre em tempos de crise, e, nessas ocasiões, houve aproveitamentos por parte dos que se afirmavam como guardiões de Deus e se intitulavam seus representantes na Terra.  A inquisição, a intolerância em relação ao livre pensamento, e até as cruzadas são disso exemplos.

Na euforia tecnológica e consumista dos últimos 100 anos, no festim da energia fóssil, o homem acreditou que podia igualar os deuses, e tinha o destino nas suas mãos. Acreditou que podia vencer a depressão e a angústia, que podia superar as doenças, e que a ciência lhe daria resposta para tudo. Porventura, até lhe permitiria descobrir a fórmula mágica do elixir da longa vida que significa a conquista da imortalidade. Para muitos, nesta euforia cornucopiana,  Deus e a Religião passaram para um plano secundário.

Nos nossos dias vive-se uma crise profunda, cujas razões, dimensão e duração ainda são mal percebidas. Acredito que, mais uma vez, ressurgirá a religião como refúgio para a incerteza, para procurar apoio e respostas para o que não se encontra a solução. E com isso pode regressar o oportunismo e a intolerância.

O Deus de Abraão ou o Deus de Maomé já não satisfazem o homem do século XXI nem respondem às suas dúvidas existenciais. Com efeito, a evolução da ciência tornou a Bíblia  e o Corão obsoletos. Depois de Galileu, a Terra deixou de ser o centro do Universo; depois de Darwin, o Homem deixou de ser o centro da Criação; depois de Freud, a Alma esfumou-se nos meandros do subconsciente. Por isso, o Deus-Pai, que, segundo as escrituras, fez o mundo, desmorona-se com as novas teorias do Big Bang. O Deus-Filho que libertou o homem da escravatura e veio dizer que todos somos iguais, ainda é esperança para muitos,  mas falhou na promessa de uma humanidade  mais justa e mais igualitária. Da Santíssima Trindade sobra o Espírito Santo que, na sua imaterialidade, é o último resíduo da Fé, porventura ainda conciliável com a teoria da Consciência Cósmica que procura interpretar o Universo, explicar as leis da Física e justificar a Vida e a Inteligência.

As últimas décadas trouxeram conhecimentos que nos mostraram a verdadeira dimensão do planeta, antes imaginado com o centro do mundo, mas hoje reduzido à sua pequenez cósmica.  O primata que dominou este planeta, o pequeno blue dot de que falava Carl Sagan, de tão insignificante que é já não pode reivindicar a paternidade de Deus nem imaginá-lo à sua imagem. O Céu,  que hoje sabemos ter centenas de milhares de milhões de galáxias, não está apoiado na Terra como pensava Ptolomeu.

Deus existe porque nós queremos que exista, e porque precisamos que ele exista. Mas ele tem de ser reinventado. Não pode ser uma entidade com inteligência, pois ele entende sem precisar de deduzir; não pode ser juiz  pois as leis do universo não têm falhas para julgar; não determina nem governa pois tudo foi pré-determinado no momento Zero, e não pode ser alterado. Enfim, não pode ter atributos porque os atributos limitam e definem, e isso é redutor. Ele é de facto uma não-entidade, semelhante ao éter que foi necessário para explicar as leis da Física,  e sem o qual se cairia no absurdo.

Desde que o homem tomou, pela primeira vez, consciência da morte (afinal o maior absurdo da criação!) que foi condenado a esta procura incessante de Deus. E não vejo que, algum dia, se liberte desta penitência...

segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Petróleo: Ótimismo Perigoso

O relatório que a Agência Internacional de Energia (AIE) publica anualmente, no mês de novembro, é um documento essencial para entender a situação energética no mundo, e em particular aquela que diz respeito ao petróleo, a forma de energia fóssil mais sensível para a saúde da economia. Recorde-se que a AIE é o organismo, sededado em Paris, que presta serviço de vigilância energética para os países da OCDE, e providencia a criação de stocks de crude em situações de emergência.

O relatório de novembro passado é apresentado, como habitualmente, com otimismo, apesar das reservas que no anos recentes se podem ler nas entrelinhas dos referidos relatórios. Uma das paricularidades destes WEO´s (World Energy Outlook) é a de apresentarem  previsões de produção e consumo sempre crescentes.

No relatório de 2012, apresentado  à imprensa no mês passado, expressa-se um cenário caraterizado pelas seguintes tendências: a produção de petróleo convencional (o velho crude que brota no estado líquido das jazidas!) continuará estabilizada e suportada pelo previsível aumento da produção no Iraque; haverá forte incremento da produção de crude não convencional a partir das areias betuminosas (tar sands) do Canadá e das  rochas xistosas (oil shale ou tight oil) dos Estados Unidos; valoriza-se ainda o aumento da produção de petróleo de águas profundas, e o ganho que se consegue nas refinarias (onde um litro na entrada se converte em um litro e "pico" na saida). Embalado por estas previsões otimistas o relatório já admite que os Estados Unidos podem voltar a ser o maior país produtor mundial a partir de 2020!

Oa analistas que se debruçam sobre estes dados têm sido unânimes em criticar o otimismo deste relatório apontando os riscos de possíveis ocorrências de alguns percalços. O Iraque, que foi invadido pelos EU há quase 10 anos, tarda em recuperar a produção, mantendo-se nos 2,5 a 3 milhões de barris por dia, muito longe dos  10 milhões previsíveis para daqui a 10 anos. Os problemas de segurança e alguns problemas técnicos como a escassez de água salgada necessária para injetar pressão nas jazidas que estão muito mais afastadas do mar do que as da Arábia Saudita (como é o caso da jazida gigante de Gawhar).

A produção a partir das tar sands no Canadá, feita por mineração ou por injeção profunda, constitui um verdadeiro problema ambiental que está a destruir toda a região de Atabasca na província de Alberta. Máquinas gigantescas extraem as areias que são depois lavadas com água quente (aquecida com gás natural) que arrasta o crude. Esta forma de extração não só tem elevados custos ambientais e energéticos (há quem diga que se gasta 1 barril de petróleo para produzir dois!), mas só se justifica com os elevados preços da matéria prima nas bolsas de mercadorias. O mesmo se pode dizer da produção das rochas de xisto americanas na região de Bakken no Dakota do Norte que é feita pelo processo de fraturaçao hidráulica e que é responsável pela contaminação de aquíferos.

Mas o que mais preocupa os que se ocupam de assegurar o suficiente fluxo energético de petróleo na economia, é a imparável tendência de aumento de consumo nos países emergentes, sobretudo na China e na Índia. Como única forma de conciliar este aumento de consumos nestes países com a escassez de produção, leva a AIE a prever uma forte diminuição de consumo nos países da OCDE que poderá ser de menos de 5 milhões de barris/dia em 2020 comparada com o consumo atual. Ora isto, a acontecer, implica que a retoma económica nestes países ( e o pleno emprego!) será uma ilusão!

O petróleo é o sangue da economia e o recurso mais importante para estimular e sustentar o crescimento que é tão necessário e tão desejado. O otimismo da AIE justifica-se para manter as expetativas a um nível elevado e evitar sentimentos depressivos nos agentes dos mercados.  Mas que não existam ilusões: o petróleo é um recurso finito cuja produção vai recorrer a tecnologias cada vez mais sofisticadas que terá custos ambientais e de exploração crescentes. A sua escassez é talvez o maior problema que a economia mundial vai enfrentar nos anos futuros. O otimismo do recente relatório da AIE serviu para animar a economia, mas é uma cortina de fumo que esconde a verdadeira dimensão do problema, e que, no limite, só servirá apara adiar o confronto com o inevitável cliff energético.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

Uma Luz ao Longe

"Deus quer, o Homem sonha, a Obra nasce..."
Fernando Pessoa,  in "Mensagem"
Não podemos ficar de braços cruzados perante a crise, nem à espera do milagre que volte a pôr tudo com era dantes. Desta vez, a solução vai ter de emergir de baixo para cima, a partir de iniciativas particulares, locais ou comunitárias. Eu penso que é este o espírito e o caminho das Iniciativas de Transição. E é  com este ânimo que está a germinar em Almeida (a vila da minha infância, onde eu fiz o meu primeiro exame) a vontade de romper com a depressão económica e erguer a bandeira da cultura e do conhecimento com o objetivo de a combater. Foi em Almeida que, no passado primeiro de dezembro, a ASTA, pela mão da sua presidente, promoveu um encontro para debater o tema.

Saí dessa tertúlia com a convicção reforçada de de que a ideia de transformar Almeida numa  Zona Franca Cultural tem pés para andar. O enquadramento da proposta, nas suas linha gerais, está feito. O objetivo é o de repovoar Almeida com gente  de cultura, artistas, escritores, músicos.... Existe uma vontade generalizada de a implementar, e sinto que a autarquia agarrou a ideia e quer levá-la para a frente. A forma de a concretizar  tem de ser faseada, sem atropelos nem ambição desmesurada, à medida das possibilidades. Não se podem cometer erros, pois estas coisas, se falham, não têm uma segunda oportunidade.

Na tertúlia foram levantadas algumas questões importantes. Que artistas atrair? Quantos, e onde os alojar? Que tipo de apoios conceder? De um modo geral, os contributos dos participantes na tertúlia do "Canto com Alma", foram válidos e oportunos. O mais urgente, agora, é definir o conceito, e, na verdade, já não estamos longe disso. Para tal eu preconizo desenvolver um documento com os seguintes pontos:
  1. Uma apresentação sumária de Almeida e da ideia de Zona Franca Cultural
  2. Quem promove e quem apoia
  3. A sua razão de ser e as vantagens que proporciona
  4. Um nome e um símbolo
  5. A quem se destina
  6. Como funciona. Qual o pacote de incentivos oferecidos
  7. O calendário da implementação
Uma vez definido o conceito, haverá que  comunicá-lo bem (ao público em geral, às escolas de arte e cultura, aos políticos, às instituições culturais, ...), e esperar pela adesão dos destinatários. As candidaturas vão aparecer espontaneamente, mas também podem ser estimuladas. O processo de seleção dos candidatos deverá passar pela apreciação de dois elementos: o currículo e uma carta de motivação. Esta carta de motivação será fundamental para perceber as razões e os objetivos das candidaturas. Haverá um júri de seleção que as apreciará. Depois haverá uma entrevista pessoal com os candidatos, a que se seguirá a publicação dos resultados.

Neste processo a autarquia terá o papel central de dinamização mas vejo alguns parceiros importantes. Em primeiro lugar a ASTA cuja presidente desde há muito tempo revelou uma grande sensibilidade para temas de cultura e uma enorme capacidade de empreender e motivar pessoas. Acho que este também é o momento de revitalizar a Associação de Amigos de Almeida que tem mantido, com uma qualidade, regularidade e independência exemplares, o jornal "Praça Alta". Associações locais (estou a lembrar-me da Rio Vivo e da Adefs, mas haverá outras) também devem dar o seu contributo. Deve também haver um envolvimento ativo do agrupamento de escolas, sem esquecer, naturalmente, a Junta de Freguesia.

O antigo Quartel das Esquadras irá desempenhar um papel importante em todo este processo, e ao projeto da sua recuperação deve ser dada a maior atenção. O dia 2 de julho de 2013, feriado municipal do Concelho, poderá ser a data certa para apresentar publicamente o conceito.

Acendeu-se uma luz ao longe, nesta Estrela do Interior. Vamos alimentá-la e protegê-la para que não se apague!


segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Portugalmente


Portugalmente é o titulo de um livro de autoria de Jorge Carvalheira, um velho companheiro do Liceu, com fotografias de Duarte Belo, que acaba de ser editado pela Âncora Editora em parceria com a Fundação Vox Populi. O lançamento ocorreu na Guarda, na minha cidade, no passado dia 28 de novembro. Eu, através da Fundação Vox populi, estive ligado à edição deste livro, e empenhei-me para que o resultado final correspondesse à qualidade da obra literária.

O autor percorre os caminhos da Beira Alta numa peregrinação que o leva das aldeias dos contrafortes orientais da  Serra da Lapa até às terras fronteiriças de Ribacôa, por trilhos antigos e num percurso que faz lembrar o do Malhadinhas de Mestre Aquilino, um almocreve que vindo das terras do demo na Lapa, um dia se aventurou com alma até Almeida, e se viu em Vale de la Mula no coração de Ribacôa.

O livro transmite uma visão crítica, escrita com um sabor amargo e mordaz, por vezes irónico, sobre um retalho  do Portugal mais autêntico de onde sobressai a "jóia" que é Trancoso, terra prenhe de "famas" como a do padre Costa com a sua prole (onde nem as irmãs nem a mãe escaparam à sua sanha fertilizadora), do Bandarra com as suas profecias, dos crimes de faca e alguidar, de revanchismos e ajustes de contas. Trancoso é a terra do famoso Ângelo da Peixeira de quem se contavam, no "prec" façanhas que incluíam rebentamentos de bombas e assaltos a sedes de partidos. Se houvesse uma máfia portuguesa ela radicaria, por certo, nestas terras pardas de giestas e de granito.

Nesta peregrinação da Lapa a Ribacôa vemos desfilar um Portugal destroçado que foi o resultado da nossa adesão à CEE, e que é espelho de  vivências e experiências mal resolvidas, como foram a ditadura do Estado Novo,  a guerra colonial, a emigração e a vinda dos retornados. É uma amostra regional mas que tem representatividade para o todo o norte interior, talvez mesmo para todo o território nacional rural. Aconselho vivamente a leitura deste livro, a qual permitirá ao leitor desfrutar da qualidade literária de um texto sobre cujo autor o escritor José Rentes de Carvalho, disse produzir  da melhor prosa que se tem escrito na língua portuguesa.

Como nota que poderia servir de epílogo ao livro eu sou levado a refletir sobre a forma como podemos portugalmente  transformar este Portugal que portugalmente desvirtuámos. Mudar Portugal para melhor é o desafio que temos pela frente. Às vezes tenho a impressão de que temos andado passivamente à espera de que nos digam o que fazer. Com a tróika isso já está a acontecer. Possivelmente temos de o fazer de baixo para cima (down-up), pois foi assim que Portugal nasceu e se fez nação. E foi também desta forma que numa outra crise de identidade nacional,  a arraia miúda, de que fala Fernão Lopes, assegurou a independencia, e abriu o caminho para a gesta da expansão.

Vamos meter mãos à obra. Vamos redescobrir as virtudes e capacidades que nos levaram a sulcar os mares e a construir novos países.  Vamos valorizar o que de mais genuino temos em Portugal. Fechem-se os bares e reabram-se as tabernas, ignoremos os shoppings e voltemos às feiras, reinventemos o estanco, a drogaria, a estância, a merceria de bairro, o lugar da fruta, e voltemos a vibrar com as bandas e os zés pereiras das romarias e do cheiro a sardinha assada. E voltemos  a amanhar a terra, e a lançar de novo as redes ao mar...

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Agenda Local XXI

Estive, há dias, em Agualva, no concelho de Sintra, convidado para participar numa reunião promovida pela Junta de Freguesia e integrada na Agenda XXI Local. Agualva é uma freguesia recente que resultou do desmembramento da freguesia de Agualva-Cacém. É um subúrbio de Lisboa, um dormitório que nasceu e vive alimentado por duas artérias que lhe dão vida e a põem em contacto com Lisboa: a linha da CP Lisboa-Sintra e a rodovia IC19.

Fiquei a saber que a freguesia tem mais de 30,000 habitantes, uma importante  população ativa, que ainda não está marcada pelo envelhecimento, e, dado muito interessante, que numa escola da freguesia estudam jovens de 22 nacionalidades, a confirmar as mudanças que se estão a verificar no nosso tecido populacional.

Estes subúrbios nasceram numa época de forte crescimento económico e de acelerada urbanização que teve início nos anos 60 do século passado. Acredito que se terão cometido erros urbanísticos, uns derivados da pressão provocada pela escassez de novas habitações, outros resultantes de impreparação e falta de capacidade de planeamento dos serviços camarários. E poderá ter havido interesses económicos que se sobrepuseram ao interesse social. Hoje existe uma estabilização do tecido urbano, e uma preocupação visível em valorizar o território. Pelo que me foi dado ver na conferência do "Centro das Lopas" tem sido notável o trabalho do Presidente da Junta e da sua equipe para trilhar novos caminhos. Foi gratificante conhecer o trabalho de muitos  jovens que se preocupam ativamente com a sustentabilidade com a defesa do ambiente e com a inclusão social.

A Agenda XXI nasceu na conferência Eco-92 ou Rio-92, ocorrida no Rio de Janeiro, Brasil, em 1992. É um documento que convida os países através dos governos e das organizações locais (governamentais ou não)  a refletir,  a discutir e implementar soluções para os problemas socioambientais. O objetivo é a reconversão da sociedade industrial para um novo paradigma o que exigirá uma nova abordagem do conceito de progresso promovendo a qualidade (e não apenas a quantidade) do crescimento. A agenda é um plano de ação para ser adotado a nível nacional ou local que visa o desenvolvimento sustentável, a defesa do ambiente, a preservação dos recursos, contra a cultura dos desperdícios, e,  ao mesmo tempo, promove a inclusão social.

 Segundo o último estudo realizado pelo Grupo de Estudos Ambientais da Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica Portuguesa, respeitante a 2011, em Portugal existem 167 potenciais processos de Agenda XXI. No entanto apenas apenas 26 desses processos estão ativos, e a sua maior concentração é na região do Grande Porto. Estes processos da Agenda XXI Local estão muito próximos das iniciativas de Transição, e, na verdade, os seus objetivos são em tudo semelhantes. Mas um deles funciona up-down e o outro down-up. Existe maior voluntarismo e maior resiliência nas iniciativas de transição, mas também uma maior fragilidade em termos de organização.

O mundo em que vivemos está em rota de colisão com um "cisne negro". Quando isso acontecer, os jovens envolvidos nestes processos estarão melhor preparados para enfrentar o day after.  É, pois, importante que estes processos se generalizem.  É urgente divulgá-los e implementá-los, sobretudo junto das escolas e da população jovem. A sua adoção vai encontrar resistência (ou, pelo menos, pouco entusiasmo) por parte do establishment pois promovem a cidadania em detrimento do consumismo. E isso não convém à economia que está regulada e condicionada  pelos "mercados", e que exige, a todo o custo,  o crescimento e aumento de consumo.



segunda-feira, 26 de novembro de 2012

A Crise numa Perspetiva Civilizacional

A crise atual é considerada por muitos uma crise financeira, e por outros uma crise económica. As suas causas são atribuídas, umas vezes à crise chamada do subprime que teve lugar nos Estados Unidos em 2007, e que rapidamente se espalhou a outras regiões, mas outras vezes a crise é atribuída ao excesso de endividamento de certos países, nomeadamente países da Europa do Sul, e até há que atribua a crise ao fulgurante desenvolvimento da China e de outros países como a Rússia, o Brasil, Índia, os designados países BRIC a que se acrescentam outros países como sejam a a Indonésia, a Turquia e a África do Sul, que nos seu conjunto são designados de "países emergentes".

Mas as origens e as causas da crise são muitas vezes relacionadas com a escassez e altos preços das matérias primas, entre as quais se destacam o petróleo, o gás natural e o carvão, os chamados combustivéis fósseis, e embora em menor número, há quem associe a crise às modificações climatéricas as quais estarão, por sua vez, associadas a fenómenos tais como furacões, tornados, cheias, secas, etc.

A crise que afeta o mundo é uma crise complexa, resiliente, e não é fácil de explicar. Talvez por isso tem sido tão difícil para os governantes e para os economistas encontrar a saída para ela. Pela sua complexidade e pela sua persistência em manter-se ─ e até agravar-se ─ vamo-nos dando conta que esta não é uma crise como as outras. De facto, as outras eram passageiras, eram um assunto quase só de economistas e outros especialistas. Esta, ao contrário, mexe connosco. Deixa-nos a pensar na manutenção do nosso emprego, a conjeturar sobre a segurança das nossas poupanças, e deixa-nos, sobretudo, preocupados com o futuro dos nossos filhos. Afinal, o que é, e donde vem este monstro que encontramos em toda a parte, e nos persegue para todo o lado?

Mais do que uma crise cíclica do nosso sistema económico, esta é uma crise civilizacional, uma crise que põe em causa os próprios fundamentos da nossa forma de viver. Dizem-nos que já se vislumbram sinais a indicar que, em breve, tudo voltará ao normal, isto é, a ser como dantes. Mas apesar das medidas que, por toda a parte, são tomadas para o relançar, o almejado crescimento emperra, e a retoma demora em aparecer.

Com efeito, o pressuposto indispensável do nosso sistema económico – podemos chamar-lhe capitalismo, economia de mercado ou liberalismo económico ─ é o seu crescimento continuo. Com efeito, quer se trate da riqueza, do consumo ou do bem-estar e do conforto que lhe estão associados, todos falam em crescimento. Nos últimos 100 anos nós assistimos a esse crescimento continuo e exponencial, mais acelerado e consistente nos 65 anos que passaram desde o final da segunda guerra mundial. E de tal forma nos habituámos a ele que se criou a falsa ilusão de que seria eterno.

Nesse século de grande prosperidade – até há quem lhe tenha chamado a Idade de Ouro – vimos nascer o conceito de Globalização. Foi um período único e extraordinário de desenvolvimento económico, durante o qual diminuiu a mortalidade infantil, aumentou a esperança de vida, e quadruplicou o número de seres humanos à face do Planeta.

Foi uma época durante a qual se abandonaram os campos e se sobrepovoaram as cidades, algumas transformadas em imensas megapólis que o elevador, movido pela magia da electricidade, fez crescer na vertical. A construção civil fez maravilhas, e o progresso tecnológico deslumbrou-nos. O automóvel, permitindo uma grande mobilidade, criou o subúrbio e fez surgir o Centro Comercial. O avião aproximou países e culturas. O turismo foi o resultado dessa mobilidade, mas também a consequência de uma economia de excedentes.

As ondas hertzianas levaram a televisão a todos os recantos do planeta. Televisão que aproximou as pessoas, nivelou as aspirações e até os gostos. A revolução informática e a Internet trouxeram uma nova literacia e a interactividade na forma de comunicar. O conforto dos lares atingiu valores nunca antes suspeitados pelos nossos avós. E de tal forma se generalizou, que a mais humilde dona de casa dispõe hoje de serviços que antes só uma vasta equipa de empregados ou de escravos proporcionava.

E o cidadão foi transformado em consumidor, e foi elevado agora à condição de centro e motor de toda a economia. Mas chegou o momento de questionar os fundamentos da crise e reavaliar os remédios que nos propõem para a resolver. E, a partir daí, encontrar soluções mais eficazes e duradouras.

Começa a instalar-se nas mentalidades mais esclarecidas a ideia de que se estão a atingir os limites (nos recursos e na capacidade do Planeta), e não é possível assegurar, para o futuro, o crescimento exponencial das últimas décadas. E que não podemos continuar indefinidamente a incentivar o consumo como forma de estimular o crescimento pois não será esta, seguramente, a forma de sair da crise.

Temos de, com urgência, procurar outras alternativas para continuar a assegurar prosperidade à raça humana. E se isso não for possível pela via material, terá de sê-lo pela via espiritual.

segunda-feira, 19 de novembro de 2012

A Sociologia da Crise

A experiência foi realizada por cientistas na  Universidade Emory (EUA) e pode contar-se em breves palavras. Dois símios, em jaulas contíguas, são premiados pelas tarefas que executam com rodelas de pepino. Um dia o tratador resolve dar a um deles bagos de uva, um alimento  que eles apreciam muito. O resultado foi que o macaco que continuou a receber as rodelas de pepino revoltou-se, recusou-se a executar as tarefas e devolveu, irado, o alimento ao tratador. Ou seja, entrou em greve, e insurgiu-se.  Para Eduardo Ottoni, especialista em macacos, da Universidade de S.Paulo, a experiência não mostra  que os primatas tenham “sentido de justiça" (sense of fairness). É mais correto falar em "sentido de recompensa justo".

Eu acho que na sociedade dos homens existe um grande paralelo com este comportamento dos macacos. Nas empresas, os aumentos de salário são reclamados, não por serem altos ou baixos, mas por que são comparados como o dos companheiros de trabalho. A revolta dos "indignados"  tem a ver com a percepção das desigualdades, e, infelizmente, tudo parece indicar que o sistema económico que nos rege atualmente não vai ser capaz de resolver o problema.

Tudo corre bem quando substituímos os pepinos por uvas, quando as coisas vão em frente. O pior é quando temos de voltar para trás, quando entramos em períodos de recessão, e temos de deixar as uvas e voltar aos pepinos. Conheço uma alentejana, licenciada na labuta diária da vida, que tem uma visão filosófica sobre o futuro. Diz ela que "nós viemos do mau para o bom; mas os nossos filhos e os nossos netos estão a ir do bom para o mau, e esse será o drama deles ". Ou lembro-me das sábias palavras do meu pai: "Vejo o mundo atual tão diferente daquele em que eu me criei que às vezes até me custa a acreditar como é possível haver tanta coisa para tanta gente. Na minha infância, nós aproveitávamos as coisas até ao limite: os fatos, as camisas, os sapatos nada se estragava.  Os jovens de hoje têm a água quente a sair da torneira, o conforto de uma casa de banho, e poucos sabem o trabalho e as voltas que dá um grão de trigo antes de se transformar numa fatia de pão."

Nesta nossa "idade do ouro", como lhe chamou o almirante Hyman Rickover, acedemos a benefícios   e níveis de conforto que nunca em tempo algum da história tinham sido alcançados. Mas existe um problema material sem solução. O aumento populacional e a escassez de recursos, apesar dos avanços tecnológicos, faz com haja cada vez menos bens a dividir por cada vez mais pessoas. Estamos confrontados com o dilema de Malthus, ou seja a dissonância entre a a estagnação dos recursos e o aumento populacional.

Teremos, pois, de aceitar este andar para trás, e isso não vai ser nada fácil. O sistema económico que temos não funcionará, pois vai estimular e agravar as desigualdades. E o sistema financeiro que foi desenhado para o crescimento contínuo, corre o risco de colapsar.  E para piorar as coisas, existem fatores agravantes, dos quais destaco a complexidade da economia que aumenta riscos de ocorrências de disrupção, a globalização que criou interdependências entre países (se um colapsar, colapsam todos!), e o papel da comunicação social que estimula, amplia e cataliza as reações das pessoas.

Vamos continuar a viver no fio da navalha. Até quando, não sabemos. E num previsível retrocesso civilizacional de que falava Duncan, haverá que esperar comportamentos sociais anómalos, e haverá muita matéria  para ser objeto de estudo pelos sociólogos.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Um Dilema Angustiante

O governo de Passos e Gaspar não é certamente um bom governo. E, ainda por cima, tem Relvas e Portas que em nada favorecem a fotografia. Mas os anteriores governos não foram melhores do que este. Não se deve pois, como alguns querem fazer, culpar apenas este governo e este orçamento pela situação do país.  E não fica bem ao naipe de antigos responsáveis políticos e ex-governantes vir agora demarcar-se da situação e armar em inocentes. Falo de Soares, de Freitas, de Ferreira Leite, de Félix, de Sampaio que vêm, em coro, carpir as desgraças da classe média como se estivessem de mãos limpas. E, o pior de tudo, é que parecem estar, também eles, desorientados sobre o caminho a tomar, e mostram-se incapazes de nos indicar vias alternativas.

Encontrar os culpados da situação em que vivemos não é um exercício fácil. Para o cidadão comum os culpados são "eles", os que nos conduziram à crise. Mas eu acho que os verdadeiros culpados somos todos nós. Todos nós que elegemos os nossos governantes e andamos distraídos a vê-los tomar decisões pouco apropriadas e contrárias ao interesse nacional. E que nos deixámos levar pelo canto das sereias consumistas.

Mas, ao aprofundar a análise, eu constato que  o principal culpado, desta situação é um conjunto de razões exógenas, exteriores à economia. A crise existe, antes de mais, porque existem prodigiosas e incontroladas forças tectónicas pressionando e  condicionando a economia. São elas as forças resultantes da pressão e das distorções demográficas, a escassez dos recursos (sobretudo os energéticos e os alimentares) e as questões ambientais, onde se destacam a poluição e as alterações climáticas.

A responsabilidade é, também, do sistema que nos rege, cujas leis e regras, desde há 250 anos (situo o seu início em 1776, ano em que  Adam Smith publicou a  Riqueza das Nações) governam a economia. Este sistema (capitalista, global ou neo-liberal, chamem-lhe o que quiserem)  está assente num modelo financeiro baseado no crédito, uma forma de criar dinheiro titulado pela riqueza futura, mas que só funciona com a garantia da criação dessa riqueza, o que exige, por sua vez, o contínuo crescimento económico.  Ora, como o crescimento parece não ser mais possível por ação das forcas tectónicas referidas, o sistema já não serve e tem que ser abandonado. Antes que ele nos abandone à nossa sorte.

Acontece que os economistas, que se formaram nas grandes Escolas e acreditam no crescimento ilimitado, que só aprenderam a trabalhar dentro deste sistema e só conhecem as suas regras, estão desorientados sem perceber o que está a acontecer. Os mais esclarecidos são economistas que vieram das ciências naturais e conhecem as leis da Física e muito em particular as da Termodinâmica, e já perceberam que a economia tem subjacente um sistema físico finito e com fronteiras que limitam o crescimento. Refiro-me, para só citar alguns, a casos como o de Frederick Soddy que foi prémio Nobel da Química e teorizou sobre o papel do dinheiro e defendeu o fim do sistema da reserva fracional, ou do físico economista Robert Ayres, que demonstrou a importância do fator energia na criação de riqueza.

No contexto da crise atual e no regime económico vigente, a receita da austeridade é a única possível para evitar a implosão do sistema financeiro, mas é uma má receita pois "congela a economia" que só está preparada para crescer. É um dilema angustiante! Estão os pobres economistas perante um doente em estado terminal, aplicando-lhe sangrias e sinapismos. Um dia destes só nos restará rezar ou recorrer aos feiticeiros para manter viva a chama da esperança.




segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Preparando o Futuro

A consciência que as pessoas começam a ter dos problemas que ameaçam o nosso futuro colectivo, e que resultam dos desequilíbrios demográficos, da escassez de recursos essenciais e das previsíveis consequências das alterações climáticas, e que estão na origem da crise que o mundo atravessa, está a provocar alterações nos comportamentos de muitas dessas pessoas. E já há quem se prepare, ou pense em começar a preparar-se, tanto a nível pessoal como a nível comunitário, para a eventualidade da ocorrência de um colapso económico e social.

Muitas pessoas estão já a adoptar novos estilos de vida, outras mudam-se para ambientes mais sustentáveis, outras começam, nos seus bairros ou nas suas comunidades, a organizar-se para fazer face às incertezas do futuro. Em países como nos Estados Unidos, no Canadá, na UE e na Austrália essa consciencialização é particularmente forte, e alastra a cada dia que passa. E recentemente têm aparecido, nesses países, muitas novelas a ficionar um mundo pós carbono e existem inúmeros livros e escritos que fazem recomendações sobre as medidas a tomar.

Essa mudança de comportamento assenta numa procura de um modo de vida mais resiliente, mais sustentável, mais rural, menos dependente das energias fósseis, mais comunitária, mais frugal, mais vegetariana e mais artesanal. E, porque se antecipa um futuro com menos mobilidade, existe de novo uma valorização e uma busca das coisas locais. A reciclagem, a compostagem, as hortas comunitárias, a simples redescoberta da importância das relações de vizinhança, são alguns dos sinais dessa mudança.

De entre os movimentos têm especial importância as iniciativas de transição que, inspiradas por Rob  Hopkins, apareceram em Totnes, no Reino Unido, em 2006.  Para uma breve pincelada de Totnes, sirvo-me de um belo texto  escrito por Philippe Jost
Totnes é o sonho dum ecologista citadino. Construída sobre uma colina, tem ruelas que sobem até às ruínas dum castelo normando, local de encontro apreciado pelos turistas, embora alguns considerem esgotante a subida. 

No Verão, dois triciclos de transporte importados da Índia, modificados para consumirem óleo de fritar recolhido nas lojas de "fish and chips", transportam gratuitamente os visitantes até ao alto do castelo, deixando que a inclinação da Fore Street, a rua principal, os leve a visitar a pé um talho antigo, um padeiro tradicional, uma loja de velas perfumadas, sem esquecer uma loja que parece ter guardado todos os discos de vinil desde os Beatles até aos Grateful Dead.
 
Não há aqui MacDonnalds, nem centros comerciais, nem grandes superfícies. Aqui crê-se que Small is beautiful, e que "pensar globalmente e agir localmente" é não só um dever mas também uma fonte de bem-estar.
 Em Portugal o movimento começa agora a dar os primeiros passos, e já vão surgindo aqui e acolá grupos que se organizam com vista a criar comunidades de transição. Exemplos como os de Paredes, Pombal, Portalegre e Telheiras, vão, seguramente, ter continuidade.

No entanto, saber como se comportarão estas comunidades numa situação real de desagregação social é algo que ainda nos escapa.Que leis (será que haverá leis?) nos regularão numa situação de colapso ou de grave perturbação da ordem social? Se existirem necessidades primárias a satisfazer, se as pessoas tiverem fome, não haverá tempo para discutir se, por exemplo, roubar para comer é legítimo ou ilegítimo. Numa organização baseada na troca directa, pode bem acontecer que elementos marginais educados no “desenrasca”, no contrabando e na traficância, sejam mais eficazes do que cidadãos cumpridores e respeitadores das leis.

Dmitry Orlov interroga-se no seu blog sobre esta questão e aconselha: "Numa situação de colapso, é certo que as velhas regras não irão funcionar, as novas não sabemos se irão funcionar ou não, nem sequer sabemos como serão. Se você participa de uma comunidade que visa preparar a transição para um modo de vida pós carbono, é importante ter em consideração uma questão vital: essa comunidade, numa eventual ruptura do sistema, irá respeitar as velhas regras ou pretende adaptar-se às novas? Talvez não seja má ideia pensar no assunto com antecedência. Considere mesmo a possibilidade testar essa eventualidade, como parte da preparação de um programa de emergência da sua comunidade".

São conselhos realistas e que devemos ter em consideração. Afinal, trata-se de saber se o futuro pertencerá aos "bons" ou aos "maus" rapazes.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

As Mãos


Há dias fui ao "Mundo das Ferramentas", uma loja tradicional  na Baixa lisboeta, com a intenção de comprar uma plaina manual. Atendeu-me um empregado espantado diante de um cliente de fato e gravata que lhe pedia uma ferramenta insólita: "Não temos, essas plainas já não se vendem, só se for para dar formação a aprendizes de marceneiro". Que agora só se vendiam plainas elétricas. A velha plaina manual é uma ferramenta que sempre me fascinou. O seu suave deslizar, as aparas que se vão soltando como caracóis, a madeira que ganha um brilho novo, os veios que se desenham e realçam a lembrar o mármore. O  tato suave na ponta dos dedos ao afagar a a face da madeira aplainada tem um prazer especial, quase sensual...

Ver aparelhar a madeira faz parte do friso  das minhas recordações de infância. Já homem, apreciava nessa tarefa o meu tio Luís que tinha uma relação especial com as ferramentas. Parecia não ser ele que as manuseava, mas elas que pareciam deslizar sozinhas, as suas mãos limitava-se a acompanhar esse deslizar. No meu tempo de menino, na minha aldeia, o mundo era feito à mão. Eram as mãos que  fiavam e teciam, que semeavam tratavam e colhiam, eram as mãos que ceifavam, malhavam o cereal e  amassavam o pão, tosquiavam as ovelhas, matavam e esfolavam as reses, cavavam a terra e abriam as sepulturas.

Na igreja, para rezar, as mãos juntavam-se viradas para o Céu. As mãos dos nossos pais e dos nossos professores afagavam e castigavam. Outras, mais dotadas e menos calejadas, empunhavam o cinzel e modelavam a pedra, com o pincel davam cor às coisas, e dedilhavam as cordas de uma guitarra para animar as festas.

As mãos são uma ferramenta fabulosa, e, na verdade, fazem a diferença entre o homem e os outros animais da criação. Foram as mãos que fizeram a história humana: desenharam gravuras nas rochas e nos tetos das cavernas, lascaram a pedra, arrotearam a terra virgem no Crescente Fértil, construiram as pirâmides no Egito, dedilharam as cordas das harpas na corte do Rei David.  Foram as mãos que empunharam espadas e fizeram as guerras, que curaram doentes,  que atearam o fogo de Hiroxima, e que assinaram a paz a bordo do Missouri.

Mas, hoje, as mãos dos homens estão a perder destreza e a ganhar outras virtualidades: martelam as teclas dos computadores, afagam os telemóveis, seguram o  volante do automóvel, e, sobretudo, gesticulam, agitadas, acompanhando as palestras e as discussões políticas. Em geral, creio eu, usam-se menos que antigamente.  Nas muitas horas passadas em frente de um aparelho de televisão ou numa sala de cinema são os olhos que funcionam, e nas pesquisas do Google as mãos limitam-se a fazer deslizar e clicar o rato. E, com as mãos paradas, o cérebro que está feito para as coordenar, fica confuso, e ameaça entrar em looping...

No "Mundo das Ferramentas" acabei por comprar uma plaina elétrica. E verifico que, comparada com a velha plaina, é mais fácil de usar, mais eficiente e exige menos perícia manual. O antigo mundo feito à mão é, hoje, um mundo feito à máquina. E contra isso nada podemos fazer. Mas se deixarmos atrofiar as mãos por falta de uso, a Civilização corre sério perigo.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

A Alma de Almeida!


Uma região fortemente deprimida como é o caso do Concelho de Almeida, com grande escassez de recursos, com a população envelhecida, e onde foi destruído o modo de viver tradicional, necessita urgentemente de encontrar o caminho da sobrevivência. De outro modo, e uma vez esvaziadas do seu património humano ativo, estas regiões correm o risco de se desertificar, e passar a ser um alvo fácil para usos marginais, tais como albergar lixeiras, atrair indústrias poluentes ou transformar-se em coutadas de caça. A opção pelo turismo como motor de desenvolvimento só funciona se existirem condições para atrair turistas e fixá-los com alguma permanência. Almeida tem condições para os atrair mas não para os fixar. As termas da Fonte Santa poderiam ser esse atrativo mas não parece que se dirijam a um alvo capaz de criar uma procura sustentável. Não têm dimensão crítica, não existe a componente hoteleira e, além disso, têm carácter de sazonalidade. E a crise atual, com restrições à mobilidade, também não favorece o sector do turismo.

Incentivos ou apoios, para promover iniciativas locais, quando não tiverem o devido acompanhamento ou seguimento, funcionam muitas vezes como balões de oxigénio, e também não têm servido para dinamizar, de forma sustentada, as regiões mais deprimidas. As construções de infraestruturas (auto estradas, rotundas, pavilhões), embora promovam temporariamente a atividade económica e o emprego, acabam por ter o um efeito reduzido, a prazo, sobre o desenvolvimento territorial, e, em muitos casos, são subutilizadas.

Uma outra solução pode ser a de criar zonas com uma vocação específica e com atrativos fiscais e apoios financeiros, as chamadas "zonas francas". Segundo a definição da Wikipédia "Uma zona franca é uma região "isolada e delimitada" dentro de um país, geralmente situada em um porto ou nas suas proximidades, onde entram mercadorias nacionais ou estrangeiras sem se sujeitar às tarifas alfandegárias normais. O objetivo consiste em estimular as trocas comerciais, em certos casos para acelerar o desenvolvimento regionall. São lugares onde o governo estimula a criação de empresas e indústrias com a redução dos impostos e apoios financeiros."

É uma definição genérica e tem de ser adaptada caso a caso. O espaço intramuros de Almeida obedece à condição essencial de uma zona franca pois trata-se de uma "região delimitada e isolada". Não está junto de um porto, mas está junto da principal fronteira terrestre do país. E, sendo o objetivo da zona franca acelerar o desenvolvimento regional, a opção ajusta-se perfeitamente a este caso. Mas Almeida, pelas suas características, não parece apta a ser uma zona franca industrial. A melhor opção, na minha proposta, será a de criar uma zona franca cultural. Este conceito não é novo e tomei conhecimento da sua aplicação ou tentativa de aplicação (em formatos distintos) na China, no Brasil, no Chile e na Colômbia. A minha ideia de zona franca Cultural aponta para a Cultura não tanto pelo seu aspeto comercial mas algo mais importante: o seu valor intrínseco. 

A propósito de uma ideia de criação de uma zona franca cultural, em Valparaíso, no Chile, surgida num jornal, um leitor opina de uma forma que ilustra as duas visões de cultura:
" Li atentamente a nota de H. Veliza em resposta aos comentários que fiz a uma nota sua anterior, na qual lançava a ideia de legislar no sentido de criar em Valparaíso uma Zona Franca Cultural. Depreendo da sua nota que artes e cultura são, por nós, entendidas de modos diferentes. Digo isto porque a proposta do meu interlocutor se centra na associação entre "investimento-rentabilidade e turismo", ao passo que a minha ideia se aproxima mais em considerar nas artes e na cultura o seu "valor de uso" . Por outras palavras, o Sr. Veliza não resiste à tentação, hoje tão em voga, de coisificar as artes e a cultura fazendo prevalecer o seu "valor de troca" minimizando o seu espírito, aquilo que lhe é intrínseco" (ler aqui o texto completo do comentário)
 Uma forma equilibrada de conciliar o "valor de troca" e o "valor de uso" terá de ser a solução para o caso de Almeida. O primeiro passo consistirá em criar condições para atrair artistas, escritores, músicos, atores, criando para tal incentivos, que podem ser de vários tipos.  O segundo passo, é desenvolver o conceito de zona franca cultural adaptado a este caso, visando atrair o público com base na organização de eventos culturais (valor de uso) sem esquecer o comércio associado à arte (valor de troca)

Esta proposta aqui apresentada, apenas como esboço, deveria de imediato ser acarinhada e desenvolvida pela edilidade, criando um grupo de trabalho para a desenvolver, grupo esse que deveria ser o mais abrangente e diversificado possível na sua composição. Caberia  a esse grupo estruturar o conceito e preparar uma proposta com vista a preparar a legislação adequada.

Uma vila que no dizer de um anterior Presidente da Câmara fica no "interior do interior", tem de fazer opções de rutura. E essa rutura poderá ser a criação de uma zona franca cultural. Não é fácil enfrentar o desafio, e é necessário, em primeiro lugar, acreditar nele. Acredito que vontades não faltarão mas vai ser preciso coordená-las. Na verdade trata-se de redescobrir a Alma de Almeida!

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

O Futuro da Memória

Nesta era digital, a facilidade que temos em registar e difundir documentos e imagens está a permitir à Humanidade criar um arquivo fabuloso. Nunca, em tempo algum da História, a capacidade de criar memória para as futuras gerações foi tão ampla como é na atualidade.
Em   O Tempo e a Memória
No Coliseu de Roma já não se travam lutas de morte entre gladiadores, nem os cristãos são lançados às feras, mas ainda hoje a memória dessas lutas e desses massacres ali atrai, anualmente, cerca de quatro milhões de visitantes. O Coliseu de Roma é uma atração turística e tem associado um significado que é a sua memória. Claro que o espaço "em si" tem um valor que ultrapassa a argamassa e as pedras dos elegantes arqueamentos, é uma heterotopia no sentido que lhe deu Michel Foucault (De outros espaços).

As Jornadas Europeias do Património que são uma iniciativa anual do Conselho da Europa e da União Europeia realizam-se, este ano, no fim de semana de 28 a 30 de setembro, e têm como tema: "O futuro da memória". Sendo a memória o registo e a evocação das coisas passadas este título é uma expressão paradoxal,  algo como "O futuro do passado". A memória das coisas preserva-se na mente dos homens de forma imprecisa, e degrada-se ao passar de umas gerações a outras, mas hoje existem suportes para preservar a memória com uma capacidade e fiabilidade impressionantes. O que traz riscos de entupir e bloquear os canais de informação, reduzindo a criatividade, e constitui  "uma ameaça de glaciação do mundo devido à incessante acumulação do passado", no dizer do já referido Foucault

O património construído é um dos mais importantes suportes da memória, e  é importante preservá-lo, como espaço dessa memória, se queremos que ela tenha futuro. A memória associada às muralhas de Almeida (localidade onde irei participar nas jornadas) é o meu exemplo para reflexão. Qual o conteúdo e qual o futuro desta "memória" de pedra? Na época da sua construção (na versão abaluartada), iniciada em 1641, estas muralhas fronteiriças tinham a função de proteger o território das invasões estrangeiras, e o seu futuro, nessa data, estaria associado a esta função. Isto é,  os construtores esperavam que as muralhas cumprissem este propósito de forma eficaz e por longo tempo.

Existem factos e emoções ligados às muralhas, e que integram a sua memória.  A começar pela sua construção, incluindo o projeto arquitetónico e a sua lógica no enquadramento estratégico das guerras da época. Depois a  extração do granito arrancado à rocha mãe; o trabalho do canteiro para lhe dar forma; o transporte, a elevação e assentamento das pedras, tudo feito à custa da força dos animais e dos braços humanos. Depois os episódios de guerra, as marcas físicas dos impactos dos projeteis, as baionetas das espingardas das sentinelas raspando a pedra nas guaritas. E há o heroísmo de uns, a traição de outros e o sofrimento de muitos (sobretudo sofrimento!). E não é difícil imaginar o desconforto nas casernas frias e húmidas, e a escuridão depressiva das prisões das Casasmatas. As calçadas da vila foram calcorreadas por soldados anónimos,  feridas pelas ferraduras das montadas dos oficiais, e por elas correu sangue suor e lágrimas. Esta é a memória que as muralhas guardam. Estou certo que é muito mais do que a reconstituição dos confrontos das tropas de Napoleão e de Wellington, evocados em cada ano.

Ora, o futuro é incerto e as muralhas de Almeida muito rapidamente deixaram de ter a justificação que presidiu à sua construção.  Mudaram as técnicas de guerra, os sistemas de defesa antigos tornaram-se obsoletos, as mudanças no relacionamento entre os povos retiraram valor estratégico a posições ou locais anteriormente fortificados.  E, na verdade, cerca de 150 anos após a sua construção, as muralhas deixaram de cumprir a função para que foram construídas. Serviram ainda de prisão política nas guerras liberais, mas em 1927 a praça forte foi definitivamente abandonada pelos militares.

Mas as muralhas podem e devem servir para preservar e assegurar o futuro da memória que lhe está associada. Mas não se pode viver só de memória,  pois ficaremos paralisados se o fizermos. Precisamos de projetar a memória no futuro. Recriar a utilidade das coisas, dar-lhe novas funcionalidades, é a melhor forma de atribuir futuro à memória. O Coliseu de Roma é hoje uma peça de museu e é esse o seu valor. Tem um público que o "consome" como um produto. Como produto ele vende-se, utilizando as modernas das técnicas de marketing para se posicionar e comunicar...

Também em Almeida será necessário um grande esforço criativo para dar futuro à memória das muralhas. Julgo que é o momento de lançar mãos à obra.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Fogo!

Julgo que os portugueses nunca gostaram de empresários, nem de gente que faz dos negócios o seu modo de vida. Em Lisboa, não conheço nome de rua a lembrar um empresário ou um comerciante.  Mas vejo por toda a parte placas toponímicas a homenagear políticos, militares, professores, escritores, músicos, poetas, pintores, atores, fadistas, futebolistas, etc... Nem conheço livros, nem filmes, nem sagas de empresários como, por exemplo, a da família Castorp na Montanha Mágica de Thomas Mann. Os homens dos romances do nosso grande Eça são filhos família, profissionais falhados como Basílio ou Carlos da Maia, fidalgotes inúteis como Gonçalo Mendes Ramires ou filósofos diletantes como Fradique. E a única vez que Eça elege um comerciante para figura central de uma história (o Alves de Alves & Companhia) é para o retratar como um manso cornudo!

Não espanta que as recentes medidas de austeridade anunciadas pelo primeiro ministro (que tira aos trabalhadores e aos reformados, incluindo os políticos, para dar aos empresários!) tenham levantado uma onda de protestos oriundos de todos os quadrantes, de Louçã a Ferreira Leite, de Jerónimo a Bagão Felix, passando, é claro, por Soares e Freitas e Alegre. E, pela primeira vez, patrões e sindicatos fizeram coro na discordância das medidas adoptadas.

Os economistas das Escolas, da direita à esquerda, estão contra as medidas anunciadas por Passos, e falam de experimentalismo político.  Dificilmente poderíamos imaginar, nesta discordância, um consenso tão alargado. E esta generalizada oposição faz-me lembrar o vibrante 1º de maio de de 1974 quando Soares e Cunhal passearam de braço dado,  ou o ultimato inglês, de janeiro de 1890, quando uma onda de indignação varreu o país e a estátua de Camões foi vestida de luto. Isto dá que pensar...

Pela primeira vez um governo anuncia medidas que vão mexer com as pessoas (todas as pessoas!), e que vão obrigar a alterar comportamentos. Que acorda as mentes para uma realidade, e que nos mostra que a crise é mais séria do que se pensava. Parece ser um tratamento de choque de que ninguém estava à espera. A “negação” da realidade tinha-nos adormecido sobre a gravidade da situação, o Tribunal Constitucional, ao chumbar a supressão do mês de natal e do mês de férias para os funcionários públicos, parecia que tinha posto o governo em ordem. Mas, mais uma vez, a Política e a Economia não vão resolver os problemas que estão, desta vez, equacionados pelas leis da Física.

As medidas anunciadas traduzem apenas a expressão, e são consequência,  do empobrecimento real deste país, e o governo veio dizer-nos que temos de baixar de escalão. Passar a consumir menos e a trabalhar mais, deixar o clube dos ricos, voltar a ser o país pobre que nunca deixámos de ser...Contrariamente ao que muitos pensam, o consumo tem de baixar, pela simples razão de que um país não pode, de forma sustentada, consumir mais do que aquilo que produz. Retirar dinheiro ao consumo e injetá-lo na economia é um bom princípio, embora difícil de entender, e fácil de contrariar...

Podemos discordar das medidas de Passos Coelho, mas a verdade é que ninguém foi capaz de apresentar alternativas. E as alternativas, se as houver, produzirão efeitos muito semelhantes a estes. Estamos perante uma situação muito curiosa. Os políticos encartados não gostam de Passos Coelho e das suas medidas. O povo não gosta dos políticos. Será que o povo gosta de Passos Coelho? Ou temos Passos Coelho (quem diria?) a unir povo e políticos.   Se non è vero è ben trovato

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

Colisão de Culturas

Neste Verão, o Miguel e mais três amigos rumaram a sul. Apanharam em Tarifa o ferry  para Tanger e foram de mochila às costas, usando os transportes públicos, descobrir Marrocos. Escusado será dizer que isso tinha de resultar numa aventura que os levou a Cefchaouen, a Fez e à famosa duna Erg Chebbi em Merzouga (considerada a porta do deserto do Sahara), muito perto da fronteira da Argélia e onde convivem gentes  das tribos tuaregues, beduínos, nómadas e berberes.

Miguel é um jovem generoso de 22 anos, e que se relaciona facilmente com as pessoas. Contou-me ele uma conversa que,  numa noite de lua cheia em que dormiam num acampamento em pleno deserto,  teve  com o guia tuareg Abdul. A certa altura, questionou ele os presentes, um a um, com a  seguinte pergunta : "Are you married?". Perante a resposta negativa de todos, o guia comenta com ar de espanto:  "Not  married!", e acrescenta:  "com essa idade ainda solteiro e sem filhos, vais ser um pai velho, e não poderás contar com os teus filhos para te ajudar" - E rematou : "Are you gay?"

Esta cena ilustra bem a diferença cultural entre as duas sociedades, a portuguesa e a marroquina, e, cuidadosamente explorada, pode resultar num tratado de economia comparada. Aos 22 anos um marroquino (falo da maioria da população) espera-o pela frente uma vida de trabalho, uma reduzida esperança de vida (que, nesta idade, não andará longe dos 50 anos). Muitos deles não saberão ler nem escrever, e já contribuem para a economia familiar desde muito tenra idade. Não sabem o que é o serviço nacional de saúde, não conhecem direitos laborais, e não têm a esperança de, um dia, vir a receber uma pensão de  reforma. De algum modo, os filhos são o seu seguro de vida.

A pergunta do tuareg tem lógica, no quadro que o rodeia, e nos seus pressupostos de vida. Mas para o Miguel e os seus amigos portugueses ela não faz nenhum sentido. Aos 22 anos um jovem português estará a terminar a faculdade, já viajou pelo mundo, tem carro desde os 18 anos, recebe uma mesada dos pais,  e terá frequentado erasmus em alguma cidade da Europa. A sua dependência dos pais e do estado foi, até esta idade, total. E as perspetivas de iniciar um trabalho a curto prazo são reduzidas. Por isso, ainda espera contar com os pais (admitindo que, felizmente, têm emprego ou recebem reforma!) durante mais alguns anos. Admitirá ter uma namorada, eventualmente viver juntos, mas casar e ter filhos não está nos seus planos de curto prazo!

A forma como a nossa sociedade prepara os jovens para a vida está desfocada em relação à realidade do país. E a presente crise veio mostrar ainda mais esse desajustamento. Dizia-me o Miguel, como forma de  justificar  esta diferença de comportamento, que os marroquinos estão 30 anos atrasados em relação a nós portugueses. Será de fato assim? Ou estaremos nós 30 anos mais próximos da insolvência social para o qual o mundo consumista e global nos está a arrastar?


segunda-feira, 6 de agosto de 2012

A Poeira das Estrelas

Stephen Hawking é um físico e cosmólogo inglês que desde há muito se ocupa das questões relacionadas com a origem do Universo e das leis que o governam. É considerado por muitos, lado a lado com Albert Einestein, a figura mais marcante da Física do último século.

Nas últimas décadas alterou-se a maneira como compreendemos o Universo e a sua origem. Foi Edwin Hubble que, pela primeira vez, no século passado, percebeu a sua dinâmica, e estabeleceu que ele se expande de forma continua e acelerada. Com base nestas conclusões foi formulada e aceite generalizadamente a  teoria do "Big Bang" que nos diz que o Universo teve origem há 13,7 mil milhões de anos, num ponto ínfimo e que a partir daí se começou a expandir. Duma massa homogénea inicial, o plasma, começaram a formar-se as partículas atómicas, e o elemento mais simples o hidrogénio. Depois formaram-se as estrelas onde se dá a fusão nuclear e o hidrogénio se transforma em hélio.

Em algumas estrelas as partículas elementares e os átomos leves agregaram-se em átomos pesados e nelas se formaram os elementos químicos, entre eles o carbono, o oxigénio e o silício. Ao fim de algum tempo, por acumulação de energia, essas estrelas (as supernovas) explodem, e projetam esses elementos no espaço. E foi essa poeira cósmica das supernovas que, por sua vez, originou os planetas e outras estrelas. E que fez a Terra onde surgiu a Vida. E é dessa poeira que nós, humanos, somos feitos.

Stephen Hawking coloca interrogações pertinentes: quem criou o Universo? Como foi o princípio de tudo, se é que houve principio? Neste processo surge naturalmente uma questão primordial: foi necessário Deus para criar o Universo?  O tempo universal é inimaginável para a nossa compreensão, e é o próprio Hawking que nos diz que antes do Big Bang não havia tempo, e que não havendo tempo não podia existir Deus. E conclui que o Universo poder ter surgido do nada, como num passe de mágica em que cada coisa criada tem o seu negativo, e que a soma de tudo é zero.

Desde Galileu que percebemos que a Terra não é o centro do Universo. Percorremos, desde então, um caminho extraordinário no conhecimento do espaço que nos rodeia, que só serviu para tomarmos consciência da nossa pequenez quando comparada com a grandiosidade do Universo. Já sabemos da existência de centenas de milhões de Galáxias, cada uma delas contendo centenas de milhões de sóis. Fala-se já de que poderão existir outros Universos paralelos ao nosso. Como comparação, o nosso Sol não é mais do que um singelo grão de areia de entre toda a areia existente nas praias da Terra.

 Hawking está consciente dos perigos que ameaçam a Civilização, entre eles a eventualidade de uma guerra nuclear. Diz ele: "A nossa única chance de sobrevivência a longo prazo, enquanto espécie, não é permanecer à espera no planeta Terra, mas temos de viajar para o espaço. Se queremos continuar além dos próximos 100 anos, o nosso futuro está no espaço. " Mas alguém já contestou esta solução argumentando que "o abuso do conhecimento científico nos últimos 100 anos ou mais, permitiu-nos a todos contribuir para destruir o planeta de uma forma cada vez mais eficiente e, aparentemente, o melhor que podemos esperar agora é utilizar os últimos recursos que nos restam lançando à sorte alguns humanos para o espaço para que eles possam repetir "a bagunça", mais uma vez, num outro lugar ....".

A predição de Hawking é um aviso sério e pertinente de quem sabe do que fala, mas baseia-se numa impossibilidade. Qualquer lugar habitável no espaço da nossa galáxia está a centenas ou milhares de anos de viagem, e o homem nunca poderá empreender tal viagem. O homem está aprisionado no seu sistema solar, e não se irá libertar dele. Como Prometeu, agrilhoado nas suas correntes por castigo dos deuses, também nós roubámos o fogo sagrado da sabedoria que nos deu acesso aos segredos da criação. E o nosso castigo é este de perceber esses segredos sem os poder alcançar e alterar, nem descortinar o seu sentido... E em cada novo dia, a águia há-de vir comer mais um pedaço do nosso fígado, para nos lembrar que somos mortais.

segunda-feira, 30 de julho de 2012

Assim vai o mundo!

Em tempo de férias, continua o mundo numa grande instabilidade. Na velha Europa, apesar dos esforços para salvar o euro, parece certa a bancarrota da Grécia e iminente o doloroso e urgente resgate da Espanha. Até a forte Alemanha vê o seu rating AAA ameaçado pela Moodys´s, e os seus bancos ameaçados de "downgrade" do rating. Algo impensável há uns meses atrás, mas sintomático da gravidade e profundidade da crise em que estamos mergulhados.

Enfrenta o mundo um daqueles dilemas que antecedem as grandes mudanças da sociedade, e até da própria civilização. Não é apenas o projeto europeu que está em causa, é o futuro de todos nós, de um certo modo de viver, de uma economia que já não encontra soluções para manter a sua própria vitalidade. E quando não somos capazes de encontrar soluções para os problemas, quando a bússola perde o norte, entra-se, muitas vezes, no perigoso domínio do aceitar a desgraça, do deixar correr o marfim, do deixar as coisas ao "deus dará".

Daqui para a frente, acho eu, tudo vai acontecer muito mais depressa, e vão encontrar-se e apontar-se culpados para o descalabro, pois há sempre culpados para tudo (Mário Soares, no seu discurso fácil e demagógico de "tudo se resolverá", já disse que tudo isto se deve à demissão dos dirigentes das democracias cristãs europeias!). Para a maioria, alinhada com a opinião dos main media, os culpados serão os especuladores financeiros, os banqueiros insaciáveis, a Chanceler Merkel arrogante e insensível ao sofrimento dos povos do sul. Como nos atestados de óbito, por obrigatoriedade, haveremos de escrever no epitáfio da crise uma causa mortis, e poucos perceberão que, afinal, tudo ocorreu por causas naturais. Por que a lei da morte é inelutável, e a explicação para ela é tão trivial como era a que se dava antigamente quando se morria simplesmente de velhice.

Na Síria vive-se na incerteza do desfecho de um conflito que já não opõe apenas o governo de Assad aos rebeldes mas opõe, de um lado, Israel e os ocidentes (o europeu e o americano) e, do outro lado, a Rússia a China e o Irão. O que está em causa é um processo complexo que tem a ver com o controlo da bacia petrolífera que rodeia o Golfo Pérsico e onde convergem interesses diversos e concorrentes entre si. Vai ser neste cenário que se irão confrontar os novos poderes mundiais, e é aqui que está o rastilho que pode incendiar a situação global. A guerra civil da Síria é o fogo a aproximar-se do rastilho!

Neste clima de confusão e instabilidade existem algumas boas noticias. Pelo menos na aparência. O Sr Leonardo Maugerie, um especialista de petróleos da italiana Eni, veio dizer numa palestra em Harvard que existe super abundância de petróleo por explorar, e que o abastecimento está assegurado por muitas décadas. Fala mesmo numa estimativa de produção global de "liquids", que inclui o biodisel e os derivados do gás, de 110 milhões de barris diários para 2020. Isto corresponde a um crescimento de 15 milhões de barris por dia em 8 anos, quando nos últimos 8 essa produção esteve quase estagnada.

De vez em quando surgem estes discursos cornucopianos para sossegar as mentes e relançar as expectativas da economia. E estas posições não são novas. Em dezembro de 1998  o Bussiness Week escevia; "you're not going to thrive in the new oil era. Technology is making it possible to find, produce, and refine oil so efficiently that its supply, at least for practical purposes, is basically unlimited." .  O mais importante não é o petróleo que existe na natureza mas aquele que se pode extrair em condições economicamente viáveis. E o petróleo de que fala o Sr Maugerie tem de ser extraído no Canadá, nos EUA, na Venezuela, no Brasil e no Iraque, em condições, quer económicas quer ambientais, muito adversas.

Em Portugal estamos a ver o crescimento e e retoma do emprego por um canudo. A seca e os incêndios, o deficit do orçamento e  da segurança social, são más noticias para os governantes. A crise instala-se na economia e, pior do que isso, nas mentes das pessoas. Na Groenlândia, dizem as agências ambientais que fazem o controlo da região por observação através de satélites, o degelo atingiu, em meados de julho, 97% do território.  Assim vai o mundo!


segunda-feira, 23 de julho de 2012

Notas de Viagem


Na semana passada andei por terras de Ribacôa, mais precisamente em Almeida e Castelo Rodrigo.
A região vive, nestes dias  agravados pela canícula e pela seca, a angústia dos tempos de crise, e sente-se desânimo e depressão um pouco por toda a parte.

O monumento ao 25 Abril inaugurado em Almeida

O monumento que há pouco se inaugurou em Almeida, para comemorar o 25 de Abril, causou alguma polémica mais pela sua estética do que pelo seu significado.  Não tenho sensibilidade artística para criticar a obra, e confesso que até nem desgosto das pedras sobrepostas e das frases nelas gravadas. Poderia ter sido mais singelo e teria o mesmo valor simbólico. Mas importa-me mais compreender o seu significado.

Terra de pequenos proprietários, sem proletariado nem indústria, nunca, no tempo da ditadura, Almeida se notabilizou por ações a favor da defesa da liberdade, da justiça social ou dos direitos das minorias. Teve, é certo, os seus democratas. Mas foram sempre uma minoria, e foi fora de Almeida que expressaram as suas ideias ou defenderam os seus ideais. Eduardo Lourenço, o mais ilustre filho do concelho que é o expoente máximo da cultura portuguesa de entre os vivos, não é um homem de Abril, porque é um homem de todas as datas, e recusa colagens. Nas votações ou nos simulacros de votações do tempo da outra senhora - e também nas eleições livres do pós 25 de abril - Almeida sempre votou massivamente do lado dos conservadores, dos que menos se identificavam com o espírito da Revolução dos Cravos. Sei de uns quantos que, em 1958, votaram Humberto Delgado mas não consta que o "General sem medo" aqui tivesse tido votação expressiva. Nem se relatou caso algum de fraude eleitoral que justificasse essa fraca votação.

Se uma data houvesse para comemorar em Almeida, essa data seria o 24 de abril e não o 25 de Abril. Mas o esforço e a persistência do Carlos  Esperança tornou lógico e justificável o que parecia ilógico e desapropriado.

A terceira muralha

Já se vê a construção de uma expressiva ciclovia à volta das muralhas de Almeida, uma obra que se antevê inútil por desnecessária. A muralha já é clicável e tem percursos bem bonitos, e alindar esses percursos teria sido preferível. Não gostei de ver esta ferida, a lembrar uma espécie de moldura modernaça em cima de uma pintura clássica. E, acho eu, não vai ajudar na candidatura de Almeida a Património Mundial da Unesco. Se um dia, passados uns anos, se fizer uma estatística e se dividir o custo da obra pelos quilómetros percorridos pelos ciclistas utilizadores, havemos de perceber melhor o erro desta decisão.

Agrupamento de Escolas

Faço parte, convidado em representação da Associação Rio Vivo, do Conselho Geral do agrupamento de escolas do concelho. E sinto-me muito honrado e orgulhoso por isso. Temos de educar de forma exemplar os poucos jovens que temos no concelho. Na ausência de outros valores, os nossos jovens são educados para a globalização e para aquilo que lhe está associado: o sucesso, a concorrência, o crescimento económico, a livre iniciativa.  Mas as escolas têm hoje alguma margem de manobra, e,  para começar enquanto não se definirem os pilares do novo paradigma, eu aconselharia a fixar os objetivos da educação à volta de três ideias simples: economizar, localizar e produzir.

O livro de Álvaro Carvalho

Estive na Mata de Lobos (essa foi a primeira razão desta viagem à Beira) onde apresentei o  novo livro do Álvaro Carvalho, "Às oito menos um quarto". Foi uma jornada inolvidável. Centenas de pessoas encheram o largo principal da Aldeia. O autor transporta-nos a um tempo que está a desaparecer, e deixa-nos a pensar como será o tempo que virá depois. Com o seu amor e dedicação pelas raízes, pessoas como o médico Álvaro Carvalho prestam um serviço extraordinário a estes deprimidos concelhos do interior.

 A Morte do Tó Sousa

Conheci o Tó Sousa numa altura que ele já tinha deixado de ser Presidente da Câmara de Almeida. Não lhe conheci posições políticas nem partidárias, nem creio que isso seja importante na avaliação do carácter das pessoas. Conheci-o, sim, como um homem afável, culto e dotado de uma memória prodigiosa.  Escrevia sobre Almeida, e deu a conhecer no Praça Alta muita da sua história. Era uma referência para o concelho que fica mais pobre com este desaparecimento. Dizem-me que deixou um vasto espólio que interessa preservar.

segunda-feira, 16 de julho de 2012

Educar Para Quê?

Para Paulo Freire, o patrono da educação brasileira, educar é construir, é libertar o homem do determinismo,  é estimular o raciocínio, é aprimorar o senso crítico, as faculdades intelectuais, físicas e morais. Educar é produzir um homem feliz e sábio.

A palavra educar deriva do latim educare, ex-ducere. Ducere tem o significado de um movimento com um sentido. As palavras "dux" e "duce" (o titulo de Mussolini!) derivam dessa raiz, e outras palavras como pro-duzir, con-duzir,  re-duzir, in-duzir, tra-duzir ou mesmo se-duzir estão formadas a partir do vocabulo ducereEx-ducere significará, na sua etimologia, guiar alguém com um sentido (ducere), partindo de dentro dessa pessoa para o que existe fora dela (ex). A palavra de origem grega pedagogo, derivada de  paidós (criança) e agodé (condução), terá um significado muito próximo deste.

Não pode, pois, haver ducere sem um sentido, da mesma forma que não pode haver educação sem objetivos e sem um guia que nos conduza para esses objetivos. A forma e o método de o fazer são importantes, mas o professor e o sentido são os elementos primordiais da educação. Os espartanos educavam para a guerra, os atenienses para a democracia, os romanos para a expansão e para o comércio, os judeus educavam para a entrada no reino de Deus. No Portugal medieval educava-se o povo para o trabalho, para a obediência à Igreja e aos senhores.

A revolução francesa foi a pedrada no charco que acabou com o antigo regime e nos trouxe novos sentidos para a vida e para a educação: a liberdade e a igualdade. A crise dos anos 30 do século passado recuperou (em Portugal mas não só)  valores tradicionais para a educação (Deus, Pátria e Família). Mas já, nessa altura, fervilhavam, entre nós na clandestinidade, as ideias de Marx e os ideais socialistas de uma nova esperança que  idolatrávamos nos ícones de "Lenine" ou de "Che Guevara".  O pós guerra, que só chegou a Portugal atrasado 30 anos (em 1974!), valorizou a democracia dos vencedores e o progresso que se lhe seguiu, progresso esse que minava e começava a destruir os ideais socialistas.  Foi neste período de happy motoring, como o definiu Kunstler, que se ergueram as catedrais da distribuição moderna, e se consolidou a globalização. E, como consequência do progresso cientifico e das novas tecnologias de comunicar,  o homem acreditou estar possuído de um poder sem limites e autoelevou-se à categoria de quase-deus. Elegeu-se, neste período, o sucesso e o consumismo como meta a atingir, e esse foi, em grande medida, o sentido da educação.

A crise que se manifestou em 2008, mas que já se adivinhava desde o inicio do século, veio alertar-nos de que o festim podia estar a terminar. Os incrédulos acharam que eram avisos de Cassandra e que o progresso estava ali ao virar da esquina como sempre acontecera. Mas a persistência da crise começou a corroer os fundamentos da globalização, a depressão instala-se na economia e nas mentes das pessoas, e já se começou a interiorizar a ideia da necessidade de "um novo paradigma" para significar que o mundo, tal como hoje o conhecemos, vai mudar. Mas ninguém sabe como será o novo, ou, se se alguém sabe, não o quer dizer!

Perante as incertezas e perigos do futuro já nos questionamos sobre como devemos educar as nossas crianças que valores lhes devemos incutir, qual o sentido e os lemas e as bandeiras que lhes queremos mostrar. Deus está morto ou quase, a pátria está reduzida à seleção nacional, e a família dissolve-se nas revistas do coração e nas telenovelas do horário nobre. Educar para o sucesso já não faz sentido quando já nem sequer se tem o emprego onde ele se afirma. Educar para a obediência contraria os princípios da constituição, e educar para a sobrevivência poderia seria visto como tarefa de formar marginais ou párias.

Enfrentamos esta realidade brutal: não temos valores sólidos para cimentar o edifício do nosso sistema educativo. Na Fundação Vox Populi e na comunidade Nepso estamos a trabalhar para encontrar um sentido para a vida e para a Educação.

segunda-feira, 9 de julho de 2012

Buenos Aires

Na semana passada, afazeres ligados à Fundação Vox Populi levaram-me até Buenos Aires. Foi uma viagem longa, via Madrid, quase 20 horas desde que saí de casa, em Lisboa, até ao Hotel  Rochester no centro velho de Buenos Aires. Ainda por cima tive de atafulhar a mala com casaco, camisolas  e sobretudo, pois aterraria  na terra dos "portenhos" em pleno inverno austral.

Buenos Aires é uma bela cidade que faz lembrar as capitais europeias. Está muito longe da desordem urbanística de S. Paulo ou dos contrastes sociais do Rio de Janeiro, onde se veem favelas dentro da cidade, lado a lado com os arranha céus.

É uma cidade portuária com muita vida, com feiras de antiguidades em San Telmo, feira de bugigangas em Palermo ou feira de artesanato no bairro da Recoleta. Não podemos escapar a um churrasco num grelhador crioulo (eles pronunciam “criojo”), e , claro, nem de deixar de assistir ao espetáculo de tango, ao som da música de Ástor Piazzolla. O Rio da Prata é um impressionante estuário de água doce com mais de 50 km de largura para o qual vertem vários rios num delta pejado de ilhas cheias de casas de veraneio. Mesmo em frente  a Buenos Aires, já no Uruguai, a uma hora de barco, está a cidade da Colónia do Sacramento fundada por portugueses no século XVII.

Na visita guiada ao bairro da Boca (onde está o estádio do famoso Boca Juniors) o guia falou dos três mitos Argentinos: Carlos Gardel, Evita e Maradona. Os argentinos vivem centrados nas representações destes mitos: o tango, a política e o futebol. A figura imaginada de Eva Perón está presente no famoso balcão da Casa Rosada no topo da Praça de Maio, e o jazigo da família Duarte (no cemitério da Recoleta), onde repousa o seu corpo, é lugar de romagem de argentinos e estrangeiros.

A grande Buenos Aires é uma aglomeração urbana de 15 milhões de habitantes, a terceira da América Latina depois da cidade do México e de S. Paulo, e que tem de enfrentar, no dia a dia os problemas da sobrepopulação. Quando percorremos uma destas mega-urbes ficamos impressionados com o seu crescimento. Afinal há 200 anos a Argentina era ainda uma colónia espanhola, e Buenos Aires era uma cidade colonial com uns escassos 40,000 habitantes. Em apenas 200 anos, o tempo de quatro gerações, a população da cidade foi multiplicada por 375!

 Resolver os problemas que o futuro das grandes cidades coloca é uma das maiores desafios para as novas gerações. O stress populacional, o stress dos recursos (sobretudo água e energia)  e o stress ambiental vão sentir-se aqui em primeiro lugar, e o impacto, no caso de uma rutura, será aqui mais devastador do que nas cidades mais pequenas ou nos meios rurais.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

A Grécia e a Europa

À hora que escrevo já se sabe que, na Grécia, a Nova Democracia terá vencido as eleições por uma margem mínima. Mas este facto não vem alterar significativamente a situação que se vive naquele país e na Europa, e a vitória da esquerda só serviria para precipitar os acontecimentos. E, só por isso, até seria desejável. Esta radicalização ou polarização do eleitorado grego vem apenas confirmar o drama que se advinha, nos próximos meses, e que vai resumir-se à angústia de uma escolha: construir ou desconstruir a Europa. Está muito mais em causa do que a moeda única e a sua preservação. Está em causa o futuro da Europa, num mundo em muito rápida transformação.

 O caminho que, no período pós-guerra, nos conduziu até aqui resultou da constatação de que a velha Europa tinha perdido a liderança do Mundo, que estava a perder as fontes de matérias primas, e que lhe restava, no futuro, o papel de uma vaga liderança cultural. Nos anos prósperos dos últimos 50 anos o caminho parecia seguro e prometia conduzir-nos ao nosso paraíso. A liberalização do comércio, a euforia de um modelo de desenvolvimento baseado na abundância, e impulsionado por intermináveis obras públicas, as apostas no turismo e os investimentos na formação pareciam ser a receita certa, e julgada perene.

O Estado Social, o conforto, a sociedade de serviços, vieram entorpecer a nobre gente do Ocidente que um dia alumiou o caminho da Civilização. Com as necessidades satisfeitas, diminuiu-se a criatividade, embotou-se o engenho. As pessoas começaram a produzir menos e a consumir mais, a viver mais tempo, não à custa do exercício físico, mas devido a melhoria da ciência médica. As crianças foram elevadas à condição de bem primeiro, começaram a escassear, e foram sendo desarmadas das suas defesas naturais, preparadas para usufruir e não para conquistar, educadas para o prazer e não para o esforço, saciadas das gorduras que entorpecem, a começar pela televisão e pelos jogos de computador.

Mário Soares vem-nos dizer, agora, que o BCE deve imprimir mais dinheiro, e faz-me pena ver um político que tem história e ajudou a fazer a história, advogar estes tratamentos paliativos, quando o mal já não se compadece com isso. Imprimir mais dinheiro é matar a economia, é querer mais do mesmo, é tratar o doente que já não se mexe de tão gordo, dando-lhe mais comida, em vez de o por a fazer exercício. No contexto atual, e pensando no sofrimento que nos espera, a espiral descendente desse sofrimento provocado pela inflação (que seria a consequência imediata do aumento da moeda em circulação, sem contrapartida na criação de riqueza) é mais dolorosa do que a espiral descendente da austeridade.

Eu acredito que a Europa não vai ser desconstruída e que a Grécia continuará no Euro. Mas isso obrigará a reconstruir a Europa noutros moldes, a mudar muitas das regras, a condicionar a democracia, e a restringir a soberania das nações que a compõem. Julgo que não será um processo fácil e que não conviverá bem com a demagogia de certos políticos. A alternativa a isto não será pacífica, possivelmente conduzirá a uma escalada de conflitos sociais. Começa a haver demasiada gente que tem a pouco a perder com o agudizar dos conflitos

A Civilização atual foi buscar muitos dos seus valores à Grécia Antiga. É uma curiosa coincidência que seja exatamente na Grécia que se desenvolvem os abcessos que ameaçam o seu futuro.


segunda-feira, 11 de junho de 2012

O Papel dos Bancos

Não é fácil entender o significado da operação que acaba de ser aprovada pelo BCE  para apoiar a banca espanhola. A função que o dinheiro desempenha na economia é, para muitos de nós, uma das coisas mais difíceis de entender. Mas nos tempos de crise em que vivemos é importante, mais do que nunca, perceber o papel do dinheiro e do crédito na economia.

 Durante muitos anos fomos levados a acreditar que medidas financeiras (por exemplo, alteração das taxas de juro, aumento do investimento público.) eram suficientes para estimular o crescimento económico e criar emprego. Mas o que acontece quando esse crescimento já não pode ocorrer, porque está limitado pelas fronteiras do sistema, ou seja, pela disponibilidade dos recursos? Tal como um elástico que parece poder sempre esticar-se um pouco mais, mas só até um ponto de rutura, assim poderá reagir a economia aos estímulos financeiros.

Afinal, como se cria o dinheiro? Muito do dinheiro em circulação é criado nos sistema bancário, através do crédito. Se eu depositar 1,000 Euros num banco, de acordo com as regras vigentes que obrigam os bancos a conservar apenas uma fração (reserva fracional) dos depósitos (imagine-se 10%), o banco pode emprestar 900 desses mil euros. E estes novecentos, se depositados noutro banco, podem dar origem a mais 810 Euros de empréstimos. E assim por diante…

Na verdade, um depósito de 1,000 Euros num banco vai transformar-se em 9,000 Euros de empréstimos. Significa isto que passa a haver, em circulação, um montante de dinheiro de 10,000, os meus 1000 mais os nove mil que alguém recebeu emprestados dos bancos. É certo que foram contraídas dívidas, e que existem as respetivas responsabilidades associadas, mas o dinheiro injetado no circuito económico foi multiplicado por 10. E a este valor acresce ainda o diferencial das taxas de juro (a diferença entre a taxa que o banco cobra e a taxa que paga), a aplicar à totalidade dos empréstimos.

Na situação atual em Espanha, a crise terá estimulado uma mini corrida aos bancos, pelos clientes receosos da sua situação. e temendo perder as suas poupanças. Ora por cada Euro que se retira de um banco, este vê-se forçado, para manter os rácios, a retirar 10 Euros do crédito já concedido ou a conceder.  E isso tem um efeito devastador sobre a economia e sobre os bancos que podem, de um momento para o outro, ficar insolventes!

Torna-se então necessário recorrer aos Bancos centrais que podem  (desde que o dinheiro deixou de ter o correspondente valor em ouro) criar dinheiro a partir do nada. Por exemplo, a Fed, a Reserva Federal Norte Americana (isto é válido para o BCE, ou para qualquer banco emissor!) cria o dinheiro a partir de nada, e duma forma muito simples. Sempre que é necessário financiar o Estado, a Fed contrai empréstimos junto do mercado, emitindo obrigações ou bonos de dívida, a prazo, aplicando um taxa de juro.

Até aqui tudo bem. Mas, no final do período, quando se vencem essas obrigações, a Reserva Federal, para pagar o valor nominal mais a taxa de juro, manda imprimir moeda nova, ou passa um cheque da Reserva Federal que tem validade garantida, mas que não tem fundos a dar-lhe cobertura. Cria-se, assim, dinheiro, a partir de nada. E num montante equivalente ao deficit das contas públicas que originou a emissão das obrigações.

Porém, a criação de dinheiro, sem consquências perversas, só pode ser feita se a economia crescer na mesma proporção que o aumento  de dinheiro em circulação. Ou se se criarem ativos virtuais, sem valor ou com valor fictício para absorver o excesso de liquidez. Mas um esquema destes só pode ser alimentado de um modo temporário num esquema em pirâmide (tipo D. Branca!). Foi o que aconteceu com os chamados ativos tóxicos que deram origem à crise financeira e à falência do Lehman Brothers, em 2008.

As medidas tomadas em Espanha para apoiar a Banca, significam injetar dinheiro na economia, sem estar assegurado o seu crescimento. É certo que os impactos destas medidas se farão sentir  na zona Euro como um todo. Em parte o dinheiro que regressa a Espanha, por via do empréstimo, pode ser aquele que saiu por via da crise e dos seus receios. Está-se a seguir uma via irregular de financiamento que pode ter consequências gravosas para a Europa e para a sua economia.


segunda-feira, 4 de junho de 2012

Crescimento descontrolado

 Até 1750 a economia mundial era um sistema bastante estável, e tinha um crescimento muito reduzido. Nos duzentos anos seguintes, até 1950, a globalização foi um processo que envolveu os países ditos desenvolvidos que viram, nesses duzentos anos, a sua riqueza per capita multiplicada 20 vezes. Mas uma grande parte do planeta e da sua população não beneficiou deste progresso. Ao lado dum mundo próspero, havia um mundo menos desenvolvido, o terceiro mundo, e uma grande parte da população mundial vivia ainda em regime colonial.

A economia global, que regula o relacionamento entre pessoas, empresas e países, resultou de um processo gradual que se iniciou quando os povos de diferentes regiões começaram a comerciar mercadorias entre eles. Pode dizer-se que a economia do mediterrâneo, no tempo dos Romanos, já era uma economia com as características de uma economia global, embora a uma escala diferente da atual.

Fatores impulsionadores da globalização foram a invenção da imprensa, ao permitir uma nova forma de comunicar e a expansão marítima iniciada nos séculos XV e XVI, que alargou o mundo conhecido dos ocidentais. Mas foi com a revolução industrial (centrada no carvão e na máquina a vapor), a partir de meados dos século XVIII, que a Globalização se impôs de forma consistente e estável. As ideias de Adam Smith expressas no livro "A Riqueza das Nações", publicado em 1776, apresentam já os princípios que iriam moldar a economia dos 250 anos seguintes.

Mas o grande impulso deu-se a seguir à segunda guerra mundial com o primeiro acordo de comércio livre, o GATT, em 1947, ao mesmo tempo que foram dados passos pequenos que levaram ao desaparecimento do sistema colonial. Um novo  e mais abrangente acordo  de comércio foi assinado em 1990 por mais de de 150 países que constituem o WTO (World Trade Organization).

O que se passou entre 1950 e a atualidade foi um processo de crescimento vertiginoso de alguns países que alterou por completo o panorama mundial. Nesse período, alguns países do que então se designava por terceiro mundo, multiplicaram o seu rendimento por 10 ou até por 20; existem 13 países que conseguiram crescer durante 25 ou mais anos consecutivos a um taxa média superior a 7% (o que equivale a duplicar a economia a cada 10 anos!).

A lista inclui naturalmente alguns dos países que hoje se designam de países emergentes como o Brasil o Japão, a China, a Coreia, a  Tailândia, e a Indonésia; e a Índia e o Vietname estão a entrar neste Clube.  A  Europa e os Estados Unidos (o velho Ocidente) assistem a estas vertiginosas mudanças, e procuram desesperadamente adaptar-se a elas. Mas  dão-se conta de que existem grandes incógnitas  sobre o futuro, e interrogam-se sobre como se irão estabelecer os novos equilíbrios.

A necessidade urgente e imperiosa de crescimento continua a agravar as assimetrias. Na irracional  ânsia de crescer a todo o custo perde-se a lucidez para distinguir o bom do mau crescimento. Crescimento que polui, crescimento que põe em risco recursos limitados e hipoteca as futuras gerações é um mau crescimento. Que pode dar origem a "abcessos civilizacionais" que podem por em risco a saúde da Civilização e o nosso futuro.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Eduardo, o Magnífico

A entrega do Prémio Pessoa a Eduardo Lourenço, no passado dia 14 de maio, pela oportunidade e pela justeza na sua atribuição, representa um momento alto para a cultura Portuguesa. Para participar na cerimónia, estiveram na Culturgest além dos representantes dos promotores do prémio (Expresso e CGD), figuras da cultura, da política e as principais figuras do Estado: o Presidente da República, a Presidente da Assembleia da República, o Primeiro Ministro, o Presidente do Tribunal de Contas, dois antigos presidentes, ex-ministros, e sei lá quem mais!

 Ali, mais uma vez, assistimos a uma lição magistral dada por um homem que já demonstrou há muito ser o português mais lúcido e esclarecido do nosso tempo. E, perante tão luzida manifestação, ocorre-me perguntar: que atributos tem este homem simples que atraem tanta gente à sua volta?

Já vimos, noutros contextos, uma grande unanimidade nacional à volta de portugueses das áreas do desporto ou até do espetáculo (como foram os casos de Eusébio, Rosa Mota ou de Amália Rodrigues!). São sobretudo portugueses que nos projetaram internacionalmente e promoveram o nosso orgulho nacional. E temos, é certo, grandes vultos como Camões, Pessoa, Eça ou Herculano que, a posteriori, se projetaram como estrelas no firmamento do nosso passado comum. Mas poucos portugueses, na área do pensamento e da cultura, terão tido, em vida, tão plenária aceitação como Eduardo Lourenço.

Lourenço é um pensador iluminado, analisa, estuda , e (diz ele!) não prevê (não tenho qualidades de Sibila, nem quero ser Cassandra). É firme nas suas convicções mas não alimenta polémicas. Na verdade não encontraria ninguém à sua altura, para confrontar ideias, tal o brilho e a elevação do seu pensamento.

Nasceu nas terras frias e pouco amanhadas, e historicamente indefinidas, de Riba Côa. Não ostenta riqueza, não tem ambição de poder. Não carrega pergaminhos familiares, nem tem nome sonante de família nobre. É humilde e é incondicionado. Não é um académico, nem empresário, não tem nada para vender. Não é cliente de ninguém nem alimenta clientela própria. Não se assume à esquerda mas também não defende os ideais de direita. Não se mostra crente mas fala de Deus com respeito e não ofende a religião. Tem orgulho nas suas origens humildes e na sua família. Fala do que sabe e sabe do que fala. Chega a fazer graça com coisas sérias mas toma todos a sério, e a todos respeita. Não se exprime com estrangeirismos nem expressões importadas, antes pelo contrário, usa o português com propriedade e sabedoria.

Vive fora de Portugal, mas conhece e entende Portugal como poucos. Tem uma noção muito lúcida sobre a Hispanidade, e parece encontrar mais semelhanças do que diferenças entre as culturas dos povos ibéricos. Não é da maçonaria, nem pertence à opus dei, nem consta que participe nas reuniões do grupo Bilderberg. Não tem, nunca teve, ambições políticas. Parece, pois, ser um homem comum.

Mas Lourenço, é, à sua maneira, um príncipe da Renascença. Ao entregar-se e ao disponibilizar-se para participar nas homenagens de que á alvo, acaba por ser ele o mecenas, dando-se a si próprio para abrilhantar e elevar o ego dos promotores. Assenta-lhe bem este cognome de "magnifico" atribuído, embora por razões diferentes, a outro Lourenço que, no período de quatroccento, brilhou em Florença.



segunda-feira, 14 de maio de 2012

A França e Hollande


Nas eleições presidenciais em França, tal como era esperado, a corrente socialista venceu a corrente mais conservadora. A senhora Le Pen não deu indicação de voto para a segunda volta, por que não quis dividir e desperdiçar o seu capital eleitoral, e prepara-se agora para as legislativas, onde poderá voltar a surpreender. Com a pompa e circunstância próprias da velha república, François Hollande será, pois, dentro de dias, "consagrado" como novo presidente dos franceses.

Numa Europa ainda em construção e no contexto da crise actual, o caminho da governação dos países que a integram (muito em particular os do Eurogrupo) é muito estreito. As opções são poucas, considerando que a primeira prioridade é evitar a rutura do sistema (sobretudo do sistema financeiro), e, ao mesmo tempo, manter a paz social. Os políticos e os governantes estão colocados perante  um dilema: de um lado a está a economia, do outro lado estão as pessoas. Ora, a economia para funcionar precisa de ter garantidos certos pressupostos os quais muitas vezes vão contra o interesse das pessoas. E os governantes têm de fazer escolhas, e são quase sempre obrigados a optar entre salvar  a economia ou satisfazer os interesses das pessoas.

Questionam-se agora os analistas sobre o que mudará, em França e na Europa, com a chegada de Hollande que sucede a um desajeitado e truculento Sarkozy.  Importa pois refletir um pouco sobre o que se ganhará  e se perderá com Hollande na presidência da França.

Posso imaginar que uma das primeiras preocupações do novo presidente será atuar no sentido da  redistribuição da riqueza, o que, no quadro das leis e da política europeia, só pode ser conseguida pela via fiscal, que é sempre um pau de dois bicos. A mesma fiscalidade que redistribui a riqueza pode contrariar a retoma do crescimento económico e até afetar negativamente a estabilidade financeira que este requere.

Manter as regalias do estado social é outra das matérias que estará em discussão. Dizem muitos (lembro-me, por exemplo, de Mário Soares!) que o estado social é, na Europa, uma conquista irreversível, e que não pode ser questionado. Mas o direito à habitação, o direito ao emprego, o direito à saúde, o direito à educação, num quadro de respeito pelos direitos fundamentais, só podem ser assegurados pela Economia e não pelo Estado.  E a economia é cega e não tem humanidade!

Liberalizar as leis laborais será outro dos dossiers polémicos de Hollande, e, também gerador de polémica, pois essa liberalização é uma exigencia para a Economia e uma contrariedade para os assalariados. Limitar ou condicionar a  imigração será uma das bandeiras da direita mais conservadora que apelará para conceitos de nacionalismo e autoridade, apelando para a emotividade que lhes está associada.

O objetivo primordial, repetido à exaustão, será o de fomentar o crescimento económico. Existe uma curiosa e, para mim estranha, concordante coincidência, por parte dos analistas oriundos de todos quadrantes políticos, sobre este ponto. Nos "mass media", ainda não apareceu ninguém a defender, de forma consistente, uma economia sem crescimento. E este é o cerne da questão, pois crescer é o único objetivo que serve simultaneamente a "esta" economia, - por relançar o crédito e os investimentos -, e às pessoas - por ser gerador de emprego.

E se o crescimento for, como parece ser, uma miragem?! Na ausência de crescimento não se irá resolver o acutilante o dilema que opõe a economia às pessoas. As tensões entre adeptos de diferentes soluções vão agravar-se, e as pessoas vão estar cada vez mais contra a economia. Ora como nas democracias as pessoas é que contam, e não é conveniente mexer com as pessoas, só restará mudar a economia. E os decisores actuais  não sabem como fazê-lo sem mudar as regras da livre concorrencia, da livre circulação de capitais, numa palavra, sem tocar nos fundamentos da doutrina capitalista. Eu julgo que não sabem e que também não o querem fazer!

O projeto europeu corre sérios riscos, e um desentendimento entre Merkel e Hollande pode colocá-lo em causa. Merkel vai continuar a defender a economia; Hollande já prometeu que vai defender as pessoas. Ambos estão certos, à sua maneira. Mas poderão seguir caminhos divergentes e inconciliáveis. A Europa pode estar a aproximar-se da hora da verdade. E no terreno da confusão sobram vantagens para a Senhora Le Pen.




segunda-feira, 7 de maio de 2012

Prazer e Felicidade


No seu ensaio de juventude “A tragédia nasce do espírito da música”, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche contrapõe dois deuses da mitologia grega para explicar dois tempos da Civilização Helénica, um associado ao culto de Apolo, o deus da Beleza, da Virtude e da Razão, e outro associado ao culto de Dionísio (o Baco dos Romanos), o deus do Prazer e das Libações. E vê o primeiro prevalecente  no apogeu das gestas Homéricas, e o segundo no período da decadência da Grécia.

 Na nossa civilização vive-se o tempo de Dionísio. Nos espetáculos, na publicidade, no entretenimento, nos apelos ao consumismo, cultiva-se o prazer como forma de atingir a felicidade. E até nas artes, no cinema e na literatura isso acontece. Valoriza-se o imediato, o fácil, em detrimento do permanente e do esforçado, desdenha-se do asceta e do abstémio. O sacrifício voluntário como forma de atingir a virtude, é visto muitas vezes, como sinónimo de demência ou sinal de comportamento estranho, quase psicopata.

 Pode-se dizer que vivemos, na nossa sociedade, um tempo de permissividade nos valores e nos costumes, e que faz lembrar o tempo da dissolução da Grécia e também da fase final do Império Romano, tempo em que se celebrava Baco e se organizavam as bacanais onde se cometiam todo o tipo de excessos para satisfazer os desejos. Em oposição ao tempo em que se representava a tragédia e os heróis davam a vida por ideais.

No nosso tempo, os heróis e os santos só têm expressão no cinema ou na banda desenhada. Julgo que não tardará muito tempo para se perceber que o tempo dos enganos proporcionados pela promessa de que se pode atingir a felicidade pela via do prazer,  vai levar-nos à angústia e à depressão coletiva.

O caminho da Transição para uma nova forma  de viver só pode percorrer-se com o espírito apolíneo, com grande rigor, com sacrifício e com humildade.