segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O Quarto Sector

A economia mundial está a entrar numa nova fase, a hiperglobalização, que se carateriza pela uniformização dos gostos e dos consumos (tanto de bens físicos como culturais), pela digitalização da informação gráfica e escrita, pela interdependência das economias, pela interatividade da comunicação possibilitada pela internet. A capacidade de armazenar e processar grandes volumes de informação (big data), de manipular os genes dos seres vivos e interferir com a própria identidade das espécies, são outras caraterísticas desta nova fase. São transformações que estão a originar novos negócios, a estabelecer novas atividades, a criar novas profissões. Surgem  poderosas empresas de um novo tipo,  a inteligência passou a ser um produto comercial. Aos poucos, na nova economia, começa a definir-se e a ganhar peso um novo sector de atividade que poderemos designar de quaternário ou de quarto sector

 Tradicionalmente, as atividades económicas repartem-se por três sectores: primário que abrange a agricultura, silvicultura, pecuária, pescas e exploração mineira; secundário que inclui as indústrias transformadoras, a construção  a produção de energia; terciário que integra o comércio e os serviços. Em Portugal, o sector primário tem vindo a perder importância. Segundo dados do INE (Estatísticas do Emprego), em 1974, 35% da população ativa trabalhava no sector primário e em 2012 essa percentagem baixou para 10%. A importância do sector secundário, por sua vez, passou de 34% para 26%. Houve uma grande transferência de emprego para o sector terciário que ocupava 31%  da população ativa em 1974, e que emprega hoje 64% dessa mesma população.

No início do século XX, o sector terciário era incipiente. O aumento gradual da sua importância foi um reflexo das transformações ocorridas durante a era do carbono. Sempre que o homem conseguiu melhorar a forma de produzir mais alimentos, isso permitiu libertar pessoas para outras atividades. O mesmo  aconteceu na revolução agrícola que conduziu à sedentarização. Voltou a acontecer com a introdução de novas técnicas de regadio, com a utilização da charrua de ferro, com o recurso ao trabalho dos animais. Mas foi com a revolução industrial, resultante da máquina a vapor e do carvão, que se iniciou uma profunda alteração na organização social. A mecanização da agricultura e o uso de fertilizantes e de pesticidas deu origem à revolução verde,  que libertou pessoas das tarefas agrícolas, muitas  das quais foram absorvidas pelas fábricas.

Ao mesmo tempo, a eletricidade libertava a mulher das tarefas domésticas. Durante muito tempo, a máquina e a energia substituiram os músculos dos trabalhadores, e, mais recentemente, a robotização já lhes substitui os neurónios. A linha de montagem que era assistida por operários passou a ser automática. Nas fábricas modernas, o trabalho humano, reduzido à sua expressão mais simples, limita-se a vigiar a correta normalidade dos processos. O comércio e os serviços absorveram uma boa parte da mão de obra libertada pela automatização e pelo aumento da eficácia da indústria.

Mas o automatismo está a chegar aos serviços. Os transportes dispensam revisores e cobradores e até condutores. Os serviços financeiros, o comércio, o turismo, a hotelaria, estão também a libertar mão de obra.  A era digital está a eliminar muitas funções das indústrias gráficas e das comunicações. Isto está a criar um enorme paradoxo: a população mundial aumenta, mas o emprego diminui, pois  as necessidades de pessoas para trabalhar são agora menores. Será que o quarto sector vai absorver os excedentes de mão de obra que são o resultado destas transformações?

Na minha opinião, a hiperglobalização enfrentará graves problemas. Não criará empregos suficientes para compensar os que destrói; está na perigosa e arriscada dependência da complexidade; varre para debaixo do tapete os graves problemas da escassez de recursos e da poluição. Não promove igualdades. Não resolve os problemas sociais.  Na verdade, a hiperglobalização irá acentuar as dissonâncias entre  a natureza e a economia. Os recursos continuarão a consumir-se de forma irracional, o planeta continuará a aquecer, as abelhas continuarão a morrer, a biodiversidade vai reduzir-se. No plano social, as grandes contradições não serão resolvidas: alguns ricos ficarão mais ricos, e muitos pobres ficarão ainda mais pobres. O desemprego crescente alimentará uma onda imparável de indignação. E os políticos, obcecados com o crescimento, só acordarão quando a casa comum já estiver a arder.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O Futuro das Cidades


Nas antevisões que fazemos do futuro, temos tendência a valorizar mais o lado bom das coisas e a deixar de lado os aspetos negativos. Foi assim que os nossos avós imaginavam o século XXI: com paz, harmonia social, curas milagrosas e bem estar generalizado. Por isso quando pensamos no futuro das cidades somos levados a imaginar as cidades do futuro. E imaginamos espaços mais verdes e limpos, mais funcionais, mais seguros, mais feitos à medida do homem. Penso que foi esse o sonho de Oscar Niemeyer ao projetar Brasília. Mas as cidades que as novas gerações irão habitar já existem hoje com os seus problemas e com  as suas distorções. Cidades que não foram feitas à medida do homem mas sim à medida do automóvel. Que são o produto duma civilização que se globalizou e que cresceu desmesuradamente.

Em 1950, mais de 70% da população mundial vivia em habitats rurais; em 2050 haverá uma inversão, e essa percentagem reduzir-se-á a 30%. Por outras palavras, a população urbana do planeta era, em 1950,  de menos de mil milhões de pessoas; em 2050 esse valor será superior a seis mil milhões. A urbanização acelerada foi o resultado de um processo que tem a ver com as grandes transformações ocorridas no pós guerra. Ela é uma consequência direta da revolução industrial, mas está relacionada com  a disponibilidade energética proporcionada pela Era do Carbono. Na verdade, o automóvel que criou os subúrbios e o elevador que criou o arranha céus  são os dois principais fatores responsáveis pela urbanização. E atrás deles está, num caso, o petróleo e, no outro, a eletricidade. Ou seja, energia abundante e barata.

 Países emergentes como a China viram, na última década, a sua população urbana crescer desmesuradamente. E o fenómeno das migrações do campo para as cidades continua.  Uma das causas que lhe deram origem foi a  revolução verde que permitiu elevadas produtividades agrícolas como resultado da mecanização e do uso de fertilizantes, e criou  mão de obra excedentária no  espaço rural. E a revolução verde foi, ela própria, resultado da evolução tecnológica, mas, sobretudo, da energia barata.

O tecido urbano das modernas cidades é, hoje, muito diferenciado: mantém-se o velho centro histórico rodeado de uma zona envolvente de serviços e, mais afastados, os subúrbios ou dormitórios. Algumas cidades atingiram dimensão crítica, e podem enfrentar problemas de gestão das redes através das quais fluem os  recursos de que necessitam (alimentos, água, energia)  e os desperdícios que produzem (lixo, esgotos). Por outro lado, o comércio das modernas cidades desenvolveu-se em grandes superfícies centrado no automóvel e que contribuíram para ajudar a desertificar os velhos centros tradicionais e históricos dessas cidades.

Mas o ciclo de crescimento urbano parece estar a terminar. São várias as razões para isso acontecer: a estabilização  da capitação energética, o fim do crescimento económico, o fim da revolução verde, o acréscimo populacional, o desemprego, enfim a crise económica. E as grandes cidades, numa economia em recessão, poderão enfrentar enormes problemas. Cenários de carências, de degradação e de insegurança podem ser a consequência.

Mais importante do idealizar a cidade do futuro, é pensar - e urgentemente - no futuro das nossas cidades. Esse futuro só em parte está nas nossas mãos. As pressões que afetam a economia que são responsáveis pela presente crise económica, vão deixar-nos pouco tempo para divagações arquitetónicas sobre o novo urbanismo. Penso que é altura de nos centrarmos no plano dos princípios: queremos cidades mais à medida dos homens, com mais sustentabilidade, com mais espírito comunitário, menos dependentes do automóvel e com um florescente comércio de proximidade. Afinal, são estes os princípios da Transição.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Alturas do Barroso

Não me temo de Castela, 
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa 
Que, ao cheiro desta canela, 
O Reino nos despovoa
 (Sá de Miranda in "Carta a António Pereira"- Senhor de Basto)

Num dos últimos fins de semana, por motivo de uma ação de formação do programa Nepso da Fundação Vox Populi, fiz, com a minha mulher, uma incursão por terras nortenhas de Basto e do Barroso. Foi o prazer de descobrir um Portugal que não conhecia, montanhoso, agreste, rude, austero e trabalhador. É nessa região que ainda se encontram dos genes mais autênticos da raça portuguesa. Mas que, à semelhança do velho Portugal rural, está em vias de desaparecer.

No domingo, em Arco de Baúlhe (Cabeceiras de Basto), na capela da Faia, assistimos à Missa. Eu sou um agnóstico, tenho em relação a Deus uma posição descomprometida e expectante, como quem espera uma revelação que lhe demonstre a sua existência. Mas não sou ateu, nem antirreligioso. Confesso que me sinto bem dentro de uma igreja. A porta está aberta, não me perguntam nada à entrada, o espaço é amplo e pacífico, o ambiente é de respeito. Gosto de ouvir as leituras da Bíblia, e procuro descodificá-las e perceber o seu significado. Muitas vezes, ao ouvi-las, interrogo-me sobre os meandros do pensamento judeu que lhes está subjacente, e que, cruzado com o pensamento grego, formatou o cristianismo e a Civilização Ocidental. Na missa, e no silêncio de algumas igrejas, aproveito, muitas vezes, para me encontrar comigo mesmo!

Na capela da Faia, o padre era assertivo. Na homilia, desceu à coxia para ficar mais perto dos fiéis e, assim, ser mais convincente na prédica, feita com vozeirão grosso e gestos rasgados. Falou da fé, mas o tema recorrente destas práticas é o bem e o mal, a morte e a promessa de vida para lá dela. Na Igreja, eram quase só velhos, havia alguns jovens, e quase não se viam crianças. Estava ao meu lado uma mulher de meia idade, com um xaile de cor verde azeitona às flores e com  arrecadas de ouro penduradas nas orelhas. O rosto era firme e anguloso. Lembrou-me a D. Aldina, uma transmontana que conheci na minha adolescência, na Guarda, quando vinha com o marido mercadejar na cidade, e pernoitava na pensão que o meu pai explorava. No fim da missa, no abraço da paz, cumprimentei aquela mulher que estava ao meu lado. Não levantou a cabeça, estendeu-me a mão  e eu senti, na aspereza daquele aperto, a dureza do que seria o seu trabalho na cozinha, na casa e na faina do campo.

Nessa tarde, como que a propósito, a Alice, a amiga que nos recebeu em Carvalho (aldeia do concelho de Boticas), recitou, como só ela o sabe fazer, o poema Calçada de Carriche do poeta António Gedeão: Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada...  E contou que certa vez o tinha declamado, publicamente, em Boticas. E que uma mulher do campo, no final, se tinha aproximado dela e sussurrado: É mesmo assim, menina! (é mesmo axim, na entoação dela ). E eu lembrei-me das mãos que me tinham cumprimentado na Capela da Faia.

Depois de conhecermos Boticas, o Moisés e a Alice levaram-nos a visitar as aldeias de Alturas do Barroso e  de Vilarinho Seco. Ainda pude ver uma aldeã vestindo a tradicional capucha de burel e, ao longo da estrada, uma manada de vacas barrosãs, pachorrentas e de longos chifres. Em Vilarinho Seco, procurámos o Pedro e a Ana que exploram um restaurante, numa casa bem transmontana: sólida, fria e farta. Recebeu-nos a Ana, corpo marcado pelos anos, denunciando esforços a manusear panelões de sopa e de cozido, confecionados em lumes grossos e servidos em largas mesas de carvalho e de castanho. Mas esta senhora, mãe de três filhos que os estudos no Porto já roubaram irreversivelmente ao Barroso rural, é uma pessoa muito alegre e jovial. No álbum de fotografias da Alice, constatei que Ana já tinha sido  menina e tinha casado de branco.

Nessa noite, fomos dormir ao centenário Palace de Vidago, inaugurado em 1910.  Foi reinaugurado por José Sócrates, em 2010, depois de renovado com um projeto de Siza Vieira e um investimento de sessenta milhões de Euros, oriundos de fundos da CE.  Este Hotel de 5 estrelas, com 70 quartos, campo de golfe e balneário requintado (um spa), orientado para um turismo termal, golfe e congressos,  é, na sua aparência e no seu significado, o oposto do Barroso. Emprega 120 pessoas, mas a sua viabilidade é duvidosa...Foi um projeto PIN, construído na euforia do betão, no tempo de Manuel Pinho. Em 2012, Pires de Lima, o então presidente da Unicer, a proprietária do hotel, falava, num tom lamentoso,  de uma taxa de ocupação de 40 a 45% e de prejuízos anuais de 4,5 milhões de Euros.  Entretanto, um outro projeto megalómano de 120 quartos para Pedras Salgadas já foi abandonado.

O Basto e o Barroso estão despovoados, e estes projetos da Globalização não respondem à urgente necessidade de os repovoar. Mas os tempos estão a mudar muito depressa, e tudo pode acontecer!

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Fracking


O petróleo é o principal motor da economia global. Isso tornou-se particularmente claro em 1980 no período que ficou conhecido como o segundo choque petrolífero (o primeiro tinha ocorrido em 1973), quando, na sequência da guerra Irão-Iraque, os preços do crude dispararam e a economia mundial entrou em recessão. No anos que se seguiram, a estratégia política e económica  dos países desenvolvidos centrou-se na segurança e na defesa das fontes de energia. Os países da OCDE criaram a Agência Internacional de Energia, sediada em Paris, para enfrentar futuras situações de crise. Iniciou-se um vasto programa de construção de centrais nucleares, desenvolveram-se novas bacias petrolíferas nomeadamente no mar do Norte, no Alaska e no Golfo do México. Com a doutrina Carter, foi revista e redefinida a  estratégia militar dos Estados Unidos que elegeram o Médio Oriente como a principal zona a defender.  Com a retração da economia, verificou-se uma queda no consumo de petróleo, e, como consequência disso, a partir de meados da década de 80, os preços voltaram a cair. 

A queda dos preços fez com que o consumo e  a produção de crude aumentassem de novo. Entretanto, verificou-se um ressurgimento do gás natural como alternativa ao petróleo nas centrais termoelétricas. Tudo isto conjugado fez com que, durante toda a década de 90, voltasse a haver abundância energética, a baixo preço.  As economias cresceram. O aumento da frota automóvel e a rápida industrialização dos países emergentes (sobretudo a Índia e a China) fizeram crescer o consumo de petróleo. Entre 1985 e 2005 o consumo de energia fóssil, a nível mundial, duplicou.  Desde 1985 até aos nossos dias esse  consumo  representou 50% de toda a que já foi consumida pela humanidade. Este período de ressurgimento teve um efeito no aumento do crédito, fez crescer a dívida de muitos países, impulsionou investimentos em obras públicas, e fez disparar o preço das casas. E teve o seu epílogo na crise de 2008.

Com efeito, a partir de 2005, começou a sentir-se de novo escassez de petróleo.  A produção do chamado petróleo convencional, aquele que é extraído nas jazidas tradicionais a baixo custo, estagnou. Ressurgiu a produção da Rússia, depois dos problemas associados à crise de desmembramento da União Soviética, mas tal  não conseguiu compensar as quebras na Indonésia, no golfo do México, no mar do Norte e no Alaska.  Depois dos acidentes de Chernobil e Three Mile Island, e devido à escassez de urânio, a via nuclear começou a ser encarada com muitas reservas . Os países produtores de petróleo (México, a Venezuela, o Irão, a Arábia Saudita), conscientes do seu poder, criaram as suas próprias empresas petrolíferas.

Para responder à escassez, a busca de alternativas energéticas desenvolveu-se em três direções: a produção de  biocombustíveis, o desenvolvimento das energias renováveis  (hídricas e não hídricas) e o recurso  a formas não convencionais de produção de petróleo. Neste último caso, falamos da extração a partir da conversão em líquido do gás e do carvão, das areias betuminosas do Canadá, das lamas da Venezuela, das jazidas de águas profundas (Angola, Golfo do Mexico, Brasil),  e,  mais recentemente, dos depósitos de gás e de petróleo associados às rochas de xisto (EUA).

Muita da esperança de contrariar a previsível escassez de crude, tem-se desenvolvido à volta das jazidas associadas às rochas de xisto. Trata-se de uma técnica conhecida há mais de 50 anos e que nos últimos anos, devido ao elevado preço do crude, teve um desenvolvimento extraordinário nos Estados Unidos, e que está já a ser testada em muito outros países. O petróleo e o gás são extraídos pela técnica da fraturação hidráulica, conhecida por fracking.  As perfurações são feitas na vertical até encontrar as camadas de xisto impregnadas de gás e  de petróleo. A uma profundidade que pode ultrapassar os mil metros, a perfuração passa a ser horizontal para acompanhar as camadas sedimentares. Devido à  fraca porosidade das rochas xistosas, os hidrocarbonetos não fluem naturalmente. Para os libertar, injeta-se, a grande pressão, uma mistura de água com outros produtos químicos, e isto provoca a fraturação da rocha.

Estes furos exigem um considerável investimento estimado em cerca de cinco vezes o dos furos tradicionais, e têm um tempo de vida útil de extração que é de cerca de metade daqueles. Por estes motivos, esta tecnologia só é viável com preços do barril de crude acima dos 70 dólares. O retorno energético do fracking é muito baixo: fala-se de que, por este processo, com a energia de um barril de petróleo se extraem entre 3 a 5 barris.  Nas jazidas da Arábia Saudita esse valor pode chegar a ser de 1 para 100.

Admite-se de que, nos Estados Unidos, a produção com esta técnica pode aumentar gradualmente até 2020 podendo chegar a 4-5 milhões de barris por dia (cerca de 5% da produção mundial),  e a partir dessa data comece a diminuir. A tecnologia do fracking surge como um  Eldorado que vem trazer um novo alento à economia global. Reestabelece uma expetativa de crescimento e criação de emprego que se estava a perder. Contudo, existem graves riscos ambientais associados a esta tecnologia como sejam a  poluição do aquíferos e do ar provocado pelos químicos utilizados e pela libertação de metano, a destruição de solos, e até a possibilidade de ocorrência de sismos.

Na minha opinião, o maior perigo é que se crie a ilusão de que esta fonte é inesgotável, e de que ela venha a resolver os problemas da escassez de petróleo. A solução fracking insiste nos combustíveis fosseis, ou seja, mais do mesmo, e os problemas ambientais e alterações climáticas vão agravar-se. O retorno energético (EROEI) vai baixar, e pode ficar abaixo do ponto crítico necessário para, no longo prazo, a justificar. O esforço para o desenvolvimento das energias a partir de fontes  renováveis vai afrouxar, a globalização vai acreditar que tem uma nova oportunidade e que a Transição pode esperar.  É importante extrair as lições do passado, evitar as armadilhas do crescimento contínuo, e aproveitar o balão de oxigénio do milagre do xisto para preparar o futuro...O pico de petróleo pode ter sido adiado por mais uma ou duas dezenas de anos, mas no essencial nenhum dos seus pressupostos está alterado. E para os ambientalistas que se preocupam com as alterações climáticas, o fracking não é uma boa notícia.


segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Dédalo e Ícaro


Icare, ubi es? Icaro, onde estás?
Ovídio, Metamorfoses

Segundo uma lenda da mitologia grega, Dédalo estava prisioneiro numa ilha juntamente com o seu filho, o jovem Ícaro.  Minos, o Rei de Creta, fechou-lhe todas as saídas por mar, e Dédalo achando  que a única fuga possível seria pelo ar, decidiu construir dois pares de asas. Fê-lo com penas de gaivota, que foi tecendo com fio e colando com cera de abelhas.

Conseguido o seu intento, experimentou as asas com sucesso, e ensinou o seu filho a voar. Deu-lhe os seguintes conselhos: não voes demasiado alto, pois o calor do Sol pode derreter a cera, nem voes demasiado baixo sobre a espuma do mar, pois a água pode encharcar e tornar pesadas as penas das tuas asas. Não te afastes, mantém-te próximo de mim, e faz como eu fizer!  Aproveita o vento e deixa-te conduzir por ele. E, batendo fortemente as asas, disse ao filho para o seguir.

Seguindo o exemplo do pai, o jovem Ícaro elevou-se no ar, e quanto mais subia mais amplo se desenhava o horizonte. As ilhas (Samos e Naxos, Paros e Délos, de um lado, Lebintos e Calimne do outro) perfilavam-se contra o azul escuro do mar, e, lá longe, os recortes das montanhas anunciavam os continentes sem fim. Mais um golpe de asa e o mundo todo estaria no seu horizonte. O Sol e o azul profundo do Céu convidavam ao alongamento do voo, e este apelo parecia prometer a Ícaro os dons de Apolo e de Zeus.

Quando o calor do sol afrouxou a cera que unia as penas das asas, Ícaro, de repente, sentiu-se desapoiado, rodopiou, e começou a cair. Sentia o vento a pressionar-lhe o ventre, os pulmões recusavam-se a inalar o ar soprante. Ainda conseguiu arrancar do mais fundo de si mesmo um grito desesperado e lancinante: Pai, Pai  ajuda-me, estou a cair!  Dédalo, que já tinha chegado ao seu destino e procurava ansiosamente o filho, ouviu este chamamento que se repetia num eco suplicante, como que vindo de todas as direções, de baixo, de cima, do oriente e do ocidente, do norte e do sul. Sentiu um arrepio, e gritou com todas as suas forças: Ícaro, meu filho, onde estás? Diz-me em que sítio te devo procurar. O silêncio foi a resposta. Mais tarde, Dédalo encontrou, flutuando, as asas desfeitas e o corpo do filho amado que chorou e enterrou numa ilha que viria a chamar-se Icária.

Apesar da diferença formal que opõe o espírito estético e antropocêntrico dos gregos ao espírito moralista e teocêntrico dos judeus, encontro nesta lenda uma certa semelhança com a parábola do filho pródigo. Em ambas, o filho, inexperiente e ambicioso, ignora os conselhos e desbarata a dádiva do pai. E em ambas, o pai recebe o filho (vivo num caso, morto no outro) sem reprimenda e sem lamento. O herói mitológico é Dédalo, e não Ícaro.

As lendas da mitologia grega encerram ensinamentos profundos. A lenda de Dédalo e Ícaro mostra a irreverência da juventude, os riscos da inexperiência, e o perigos da ambição desmesurada. Viver na altura certa, nem demasiado baixo, nem demasiado alto, e aprender com o exemplo dos mais velhos, são  princípios eternos da sabedoria humana.

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

O bosão de Higgs

Um amigo meu perguntou-me, há dias, se após a descoberta do bosão de Higgs ainda precisamos de Deus para explicar a criação do Mundo. O bosão de Higgs é uma partícula subatómica conhecida pela partícula de Deus. Por ser altamente instável e desprovida de spin e de carga elétrica, teimava em escapar aos detetores que analisam a desintegração dos núcleos quando bombardeados por protões nos aceleradores eletromagnéticos do CERN (Conselho Europeu de Pesquisa Nuclear, na Suiça). Finalmente foi detetado, e isso veio contribuir para confirmar algumas teorias  relacionadas com a estrutura do núcleo do átomos.

No tempo em que eu estudei Física na Universidade, a estrutura do átomo  ainda era descrita na forma simples de um núcleo a volta do qual giravam eletrões, em órbitas bem definidas, à semelhança de um sistema solar em miniatuira. As dimensões do átomo eram desconcertantes pois mostravam que, dentro deles, predominava o espaço vazio. Imaginem, por simples comparação a uma escala humana, que o núcleo tem o tamanho de uma laranja, e os eletrões giram em órbitas com  vários quilómetros de raio!

Julgava eu que a questão estava arrumada. O modelo parecia definitivo e extraordinário. A última camada eletrónicas à volta do núcleo tinha um númeo de eletrões entre 1 e 8 e isso explicava a formação dos iões e dos compostos químicos. Por exemplo, todos os elementos com um eletrão na última camada são quimicamente parecidos entre si. Assim se construiu a elegante a tabela de Mendeleev, onde se arrumavam e explicavam as propriedades de  todos os elementos da natureza. 

Mas, nos últimos 50 anos, aprofundou-se o estudo do átomo e começou-se a desvendar  a natureza das suas partículas subatómicas. O eletrão passou a ser visto como tendo um natureza mista de onda e partícula e as suas propriedades eram melhor explicadas pelas leis de distribuição estatística do que pela física absolutista de Newton. A mecânica clássica dava lugar à mecânica quântica. A Física das coisas e das certezas dava lugar à Física dos conceitos e das probabilidades.

O núcleo do átomo, onde se concentrava a sua massa e onde as suas componentes (o protão e o neutrão) estavam fortemente unidos, revelou-se uma caixa de surpresas. Decompor as partículas do núcleo em outras componentes elementares vinha resolver alguns problemas e consolidar uma teoria explicativa que ficou conhecida pelo modelo padrão. Primeiro surgiram os quarks, aos quais se associaram novas e estranhas propriedades como o spin. Depois os leptões, os fotões, os bosões e os fermiões, alguns deles servindo para explicar as forças de atração entre partículas nucleares.

O bosão de Higgs é uma peça que faltava no puzzle que os cientistas tentam montar para perceber  natureza última da matéria. Ele vem explicar a massa de certas partículas. Mas o puzzle continua incompleto. Procura-se agora uma outra partícula, que já tem nome, o gravitão, um fermião  que se julga responsavel pela força da gravidade, essa força misteriosa que faz com que dois corpos afastados e isolados um do outro se atraiam mutuamente.  Ainda ninguém conseguiu explicar a misteriosa gravidade. É como se entre dois corpos materiais existisse uma invisivel "paixão" que os impele um para o outro. E, quando o átomo estiver explicado, já teremos percebido 5% do Universo! A seguir, será altura dos cientistas partirem  à procura da matéria negra que ajudará a explicar mais uma parte dos restantes 95%.

Ao meu amigo que me colocou a intrigante pergunta sobre se Deus ainda é necessário para explicar a criação do Mundo, eu sugeri-lhe que contasse as estrelas do Céu que são mais do que os grãos de areia da Terra, ou que contasse os átomos de carbono dum ponto, deixado impresso pela grafite de um lápis afiado, numa folha de papel, e que são mais que pessoas existentes à face do nosso planeta! Quando terminasse a contagem, eu responderia à sua pergunta, caso ele ainda precisasse da resposta.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Lampedusa

Lampedusa é uma fissura aberta na muralha da (ainda) tranquila fortaleza europeia que ameaça transformar-se numa brecha de grandes proporções. De um lado e de outro do Mediterrâneo perfilam-se dois povos e duas realidades bem distintas. Os europeus anémicos, endividados, indignados com uma insidiosa crise económica para resolver,  estão confrontados com os filhos de uma nova África, islâmica, jovem, depauperada e a rebentar pelas costuras.

Como que atraídos por irresistíveis cantos de sereias, do lado africano, chegam às praias do Mare Nostrum milhares de homens, mulheres e crianças, famélicos, sem terra, sem pão, e sem outros haveres para lá da escassa roupa que lhes cobre o corpo. Vêm da Líbia, da Tunísia, da Etiópia, da Eritreia, da Somália e da Síria, atravessam desertos, cruzam fronteiras. Entregaram o pouco que tinham a passadores e engajadores que lhes prometeram o paraíso do outro lado do mar! Nada os detém: não temem o mar, nem as autoridades, nem as grades de qualquer prisão. A  esperança de chegar à outra margem sobrepõe-se a tudo, e desvaloriza os riscos de sucumbirem na caminhada, de naufragarem no mar revolto ou de serem devolvidos à procedência.

Embarcam amontoados em frágeis e inseguras embarcações, lembrando a forma como viajavam os seus irmãos nos barcos  negreiros que, a partir do século XVI e até ao século XIX, partiam do Senegal e do Golfo da Guiné e demandavam a América, as Caraíbas ou o Brasil, destinados  ao trabalho escravo nas fazendas de algodão ou nos engenhos de açúcar. A grande diferença é que agora não vão forçados, nem vão acorrentados. Vão de sua livre vontade, e  nem sequer olham para trás. A sua única esperança está no almejado destino.

A história tem demonstrado que se houver gente a mais num espaço e gente a menos noutro que lhe seja acessível, se estabelecerá um fluxo demográfico entre esses espaços que funcionará como um sistema de vasos comunicantes. Foi assim que os Europeus inundaram a terra dos Índios, nas Américas. E o mesmo se verifica em muitas outras zonas do globo, como  na fronteira do México com os EUA, na fronteira da Índia com o Bangladesh e nas fronteiras entre Israel com os territórios ocupados da Palestina, onde existem fortes pressões demográficas.

A tensão entre as duas margens do Mediterrâneo não vai reduzir-se, antes pelo contrário, vai acumular-se. Para isso contribui a natalidade elevada, a fome e a escassez de recursos do lado sul e  a baixa natalidade, o comodismo, a apatia do lado norte.  Mas existem outros fatores. A humanidade já não se divide em raças, nem os continentes lhes estão reservados. Está a emergir, na nova África que nos anos sessenta ascendeu à independência,  uma classe intelectual, culta e  informada que não terá dificuldade em demonstrar e defender o direito moral dos africanos invadirem a Europa. Os assobios a Durão Barroso em Lampedusa são um sinal. E até o papa Francisco já reconheceu esse direito ao classificar de vergonha o que se passa em Lampedusa, e ao criticar a “indiferença para com os que fogem da escravatura e da fome, para encontrar a liberdade".

Lampedusa vai mexer com a Europa.  O dique que é a fronteira da Europa é vasto e tem muitos pontos frágeis: as praias da Andaluzia, Malta, Lampedusa, as extensas fronteiras da Grécia e dos Balcãs.  Os europeus do Norte vão ter mais um argumento contra os do sul, e irão levantar barreiras dentro do próprio espaço europeu para deter a invasão. Um dia, que, acredito, não virá longe, surgirão as primeiras balsas de imigrantes no litoral algarvio, e nessa altura, perceberemos que esta questão também nos diz respeito, a nós, aos portugueses.

segunda-feira, 14 de outubro de 2013

O Pão e o Vinho

Segundo os evangelistas, na última ceia, antes de se entregar à justiça de Pilatos, Jesus repartiu o pão e o vinho entre os seus seguidores, simbolizando, com este gesto, oferecer o seu corpo e o seu sangue em sacrifício. Os dons desta oferenda, ficaram, desde então, associados aos rituais do cristianismo. Na mesa desta ceia, estava o pão, cozido sem fermento à maneira árabe, e haveria  tâmaras, figos secos, azeitonas, queijo, frutos secos e mel. Talvez houvesse iogurte ou pasta de grão de bico, o  hommus.  E havia, claro,  vinho, leve e aromático, bebido por taças de barro, possivelmente adicionado com água, à maneira dos romanos.

Na tradição da cultura ocidental, na religião, na literatura, no imaginário popular  o pão e o vinho tiveram, e ainda têm, um significado muito especial.  "Pão e vinho andam o caminho", diz o povo. Estes dois frutos da terra estão profundamente enraizados na cultura e na economia mediterrânica, e assumiram um papel decisivo na expansão da civilização. Temos pois de voltar a celebrar o pão e o vinho.

Estamos no tempo das vindimas, e é apropriado falar de vinho. Nos campos do nosso Portugal, do Minho ao Algarve, anda no ar o cheiro adocicado do vinho mosto. Sente-se a azáfama dos vinhateiros. Na pequena agricultura moribunda que resultou da nossa adesão à Europa, a vinha é umas das poucas atividades que ainda resistem. No Douro, por exemplo, ao lado das grandes quintas, existem ainda muitas pequenas explorações com gente esforçada, que mal consegue ganhar para as despesas do amanho das vinhas. Apenas o cooperativismo lhes permite manter as explorações. Mas  fazer vinho é uma paixão, e o ciclo repete-se em cada outono. 

"Beber vinho é dar de comer a um milhão de portugueses", era um slogan do Estado Novo, mais tarde repudiado, como tudo o que vinha da ditadura. Mas não me parece, como já vi entendido, que o slogan contivesse uma incentivação ao consumo de álcool, poderia mais servir como uma forma de travar o consumo de cerveja ou da coca-cola, esta teimosamente impedida de entrar em Portugal por Salazar, precisamente como forma de proteger o consumo de vinho.  Produzem-se anualmente no nosso país 6 milhões de hectolitros de vinho, e Portugal é o décimo produtor e o sétimo exportador mundial. Exportam-se, em cada ano, cerca de 2 milhões de hectolitros para Angola, RU, França, Alemanha, Estados Unidos, Canadá, Brasil. Recentemente ganharam relevo as exportações para a China que  pode vir a ser um grande mercado para o vinho português.

Mas já em relação à produção de  cereais de que se faz o pão, o nosso país está longe de ser autosuficiente. Em 1911, de acordo com as estatísticas de produção agrícola, citadas por Pedro Lains e Paulo Sousa (in Análise Social, nº33, 1998), produziram-se em Portugal 319,000 toneladas de trigo, correspondendo a 28 milhões de alqueires de 15 litros. Exatamente um século depois, em 2011, e beneficiando de mecanização, de novos fertilizantes, de eficientes pesticidas e herbicidas, do apuramento de sementes, e de  subsídios vários, a quantidade de trigo (nas variedades mole, duro e triticale)  produzida em Portugal foi de 74,000 toneladas (fonte:INE). Ou seja, produziu-se menos de um quarto do que tinha sido produzido um século antes. Simplesmente espantoso, este milagre (ou armadilha!) da globalização. Em 1911, Portugal produzia cereal para fazer o pão que comia, agora importa mais de 3/4 desse cereal.

Nenhum outro alimento como o pão está associado ao trabalho do homem para ganhar o seu sustento. O  pão ganha-se com trabalho e suor. Um país, para ser verdadeiramente independente, tem de ser capaz de se alimentar a si próprio. E se não for capaz de produzir o pão e o vinho para os seus filhos, dificilmente andará o caminho...

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Gerações


Há dias, na Fnac do Chiado, aquando da apresentação do livro "O Mundo em Transição", uma jovem interpelou a mesa dizendo que a questão da transição não é uma questão nova, que o mundo sempre esteve em transição, e que a geração mais velha, a geração que se prepara para partir, acha que o mundo vai ter o mesmo destino. Afirmou que há muita coisa a fazer, muitas ideias a desenvolver, muitos espaços para ocupar, e que os jovens estão preparados para enfrentar os desafios do futuro.

Estarão, de facto, os jovens preparados para enfrentar os desafios do futuro? A verdade é que sempre estiveram, e nós não temos o direito de lhe tirar a esperança. Mas devemos fazer o que sempre os mais velhos fizeram: alertar para os perigos, apelar à sabedoria que os anos apuram, para lhes apontar alguns dos escolhos que irão encontrar pelo caminho.

Nas famílias tradicionais imperava o respeito pelos mais velhos. Os mais novos eram ensinados a venerá-los, a respeitá-los e a ouvi-los. Pedir a bênção ao pai ou ao avô era o gesto que simbolizava esse respeito. O conforto associado à idade do ouro, a escassez de filhos da classe emergente, urbana e culta (ou, diria melhor, informada), inverteu as tradicionais prioridades da escala etária. As crianças passaram a ocupar a primazia na escala familiar. São os primeiros a ser servidos, condicionam as opções dos mais velhos, reclamam, impõem, exigem...

Na sociedade consumista,  as crianças de hoje são muito diferentes dos garotos da minha infância. Não sabem o que é desejar e não ter, não precisam de lutar pelos brinquedos que anseiam, nem se deslumbram com as cores e as bolas de uma árvore de Natal. O mundo deles é a fingir, é o mundo onírico da televisão e dos desenhos animados, no qual os animais falam, e os heróis têm muitas vidas. As crianças de hoje, no mundo ocidental, já não sabem o que é descobrir um ninho de pássaro, nem sabem como se faz um carrinho com uma lata vazia de conserva. E desconhecem a  alegria de receber uma barra de chocolate. Demos-lhes tudo, mas roubámos-lhes o sonho...

Está a desaparecer a geração que ainda conheceu o mundo sem eletricidade, sem televisão, sem automóveis e sem aviões. E os mais novos nunca conheceram o mundo sem Internet e sem telemóveis. É muito difícil para um jovem imaginar o mundo de outra forma. E isso não seria preocupante se  essas conquistas  fossem irreversíveis. Mas não são. A eletricidade e a Internet já fazem parte dos genes das novas gerações. E um dia, se os vindouros estiverem confrontados com um prolongado apagão elétrico, ficarão tão desorientados como teria ficado o meu avô se tivesse perdido a visão ou tivesse ficado privado das suas mãos.

Tal como aconteceu com o Império Romano, o colapso da civilização ocidental pode ocorrer pela quebra brusca da complexidade. Se isso acontecer, o futuro pertencerá aos povos que por qualquer motivo não embarcaram no navio do progresso. Povos que estão mais atrasados, mas terão mais capacidade de sobrevivência. Os nossos jovens não são educados para a adversidade. Seria recomendável um serviço cívico obrigatório em que os jovens fossem ser obrigados a viver uns meses sem eletricidade e sem gasolina, e sem as ferramentas eletrónicas complexas do mundo de hoje. O seu futuro ficaria mais acautelado.

segunda-feira, 30 de setembro de 2013

O Fogo do Inferno


A notícia não podia ser pior. Prestes a ser engolido pelo fogo do Inferno, é a morte anunciada do Paraíso Terrestre de onde Deus expulsou Adão e Eva e que o homo digitalis julgava ter reconquistado. O relatório divulgado a semana passada pelo painel internacional de cientistas das Nações Unidas não deixa lugar a dúvidas: o homem, quer dizer, a economia está a interferir com o equilíbrio da hidrosfera e da atmosfera. E, com esta interferência, afeta a biosfera e a vida que ela integra. Conclusão: a atividade do homem está a pôr em causa o futuro da própria espécie humana.

O painel intergovernamental para o estudo das alterações climáticas (IPCC)  formado pela Organização Meteorológica Mundial (WMO) e pelas Nações Unidas, é constituído por três grupos de trabalho. O relatório agora apresentado foi produzido pelo Grupo I  que se ocupa da análise dos apectos físicos e científicos relacionados com o clima e as suas alterações. O relatório foi elaborado por  209 cientistas de 39 países juntamente com 50 editores, e contou com a contribuição de mais 600 outros especialistas de 32 países. No primeiro semestre do próximo ano será publicado o relatório do Grupo II que analisará o impacto económico das alterações climáticas, e mais tarde, aparecerá o relatório do Gupo III que se ocupará das medidas a tomar para mitigar os efeitos dessas alterações climáticas

A grande conclusão do relatório do Grupo I é a seguinte: "O aquecimento  do sistema climatérico é inequívoco, e, desde 1950, as mudanças observadas não têm paralelo nas décadas e milénios precedentes. A atmosfera e os oceanos aqueceram, a queda de neve e a formação de gelo diminuíram, o nível do mar subiu, e as concentrações de gases de efeito de estufa aumentaram."

Não vou entrar em detalhes sobre este importante relatório. Ele pode ser consultado no site da organização. Destaco apenas outra grande conclusão que encerra uma velha discussão: "A influência do homem no sistema climático é clara. Isto resulta evidente do aumento da concentração de gases com efeito de estufa na atmosfera, do aumento do seu efeito radiante, do aquecimento observado, e da compreensão do sistema climático". Durante muito tempo, a relação entre a atividade humana e as alterações climáticas foi posta em causa. Argumentava-se que as alterações climáticas sempre ocorreram no planeta, e que não havia provas de que na atualidade elas seriam uma consequência da atividade do homem.

A Sustentabilidade exige que o consumo de recursos e as emissões poluentes se adaptem à capacidade do planeta para fazer a  reposição daqueles e fazer a  absorção destas, sem comprometer equilíbrios sensíveis. A Economia, por sua vez, fundamenta-se na lei da oferta e da procura e na maximização do lucro e ignora as exigências da sustentabilidade. O sistema financeiro (os mercados), baseado no crédito, exige crescimento económico continuo para não se  desmoronar, e está ao lado da economia contra a sustentabilidade. Estes três variáveis, sustentabilidade, economia e crédito integram um sistema de equações que não tem solução, pois o que uma exige as outras rejeitam.

Economia e Sustentabilidade estão, pois, em rota de colisão. Este relatório do IPCC mostra as evidências, e antecipa os danos que a economia está a causar ao planeta; dentro de meses, um outro relatório virá dizer-nos quais os efeitos negativos que esses danos estão a causar à economia. Estamos dentro de um círculo vicioso que só terá fim quando os danos recíprocos provocados num lado e noutro (no planeta e na economia!) forem irreversíveis.E, nessa altura, já não interessará descobrir o culpado.

O tema vai continuar a discutir-se nas conferências e cimeiras mundiais mas nada será decidido, porque as decisões a favor da sustentabilidade são contra a economia, e o curto prazo desta impõe-se sobre o longo prazo daquela. Nenhum país terá capacidade para impor a outros países decisões que afetem a sua produção, que reduzam o seu crescimento económico ou que belisquem os interesses dos seus mercados. Ninguém, a não ser os românticos europeus, irá tomar decisões unilaterais que, já se sabe, outros não tomarão. A Europa vai continuar a fazer o papel de agente bem comportado, e vai insistir em, a prazo, baixar em 20% as emissões de CO2.  E os europeus ficarão espantados por ver a China (onde as poluentes centrais termicas a carvão surgem como cogumelos!) poluir em 4 meses o que a Europa deixou, esforçadamente, de poluir numa dezena de anos. E, inundados com os produtos chineses, indignados com a crise e a falta de emprego, perguntarão eles se vale a pena o sacrifício.

E, em cada nova cimeira, o planeta estará mais quente. E isto faz lembrar a história do sapo dentro da panela a aquecer no lume brando. Só tarde demais se apercebe que a água ficou demasiado quente, e já não consegue saltar para fora da panela...

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Encruzilhadas

Em 1798, o reverendo Thomas Malthus publica em Londres o seu Ensaio sobre a população e a forma como esta afeta o desenvolvimento da sociedade. A tese de Malthus baseia-se em dois simples postulados: 1) o ser humano é impulsionado a reproduzir-se ou, na forma original, é muito forte a atração ou a paixão entre sexos, e 2)  os homens precisam de comer para viver.  Destes postulados retira ele a conclusão de que o alimento precisa de ser produzido em quantidade suficiente para acompanhar o impulso reprodutivo, para o que é necessário solo arável, mas, acreditava ele, a sua disponibilidade não acompanharia a progressão populacional, facto que iria criar problemas futuros. Malthus estava longe de imaginar que, nos dois séculos seguintes, três revoluções iriam alterar radicalmente estes pressupostos: uma revolução social, outra tecnológica e outra energética.

O homem começou por caçar e recolher alimentos produzidos espontâneamente pela natureza, e fez isto durante milhões de anos. Pode dizer-se que, nesse período, havia uma economia natural. Depois, há dez mil anos, domesticou animais e plantas, sedentarizou-se e dedicou-se à agricultura. E desde então, o homem aperfeiçoou a forma de converter a energia solar em alimentos. Pois é sabido que a produção dos alimentos básicos da cadeia alimentar, resulta da transformação do CO2 em carbono diretamente nas plantas por ação do sol, ou pela incorporação de matéria orgânica  rica em carbono e azoto que é adicionada aos solos,  e isto é também uma forma diferida, mas próxima, de aproveitamento da energia solar. A utilização de animais de tração, a introdução da charrua de ferro e a melhoria das  técnicas de regadio foram alguns dos passos do longo processo de aperfeiçoamento da agricultura.

Em 1798, o mundo vivia numa encruzilhada: a economia agrícola estava no seu auge, mas o rápido  crescimento populacional que estava a duplicar a população a cada 25 anos, na Inglaterra e nos novos estados americanos, ameaçava a sua sustentabilidade.  Mas algo estava a mudar, a Revolução Francesa reivindicava  o poder para o povo. E a independência da América, em 1776, mostrou ao mundo que a nova ordem era praticável. A publicação da Riqueza das Nações de Adam Smith, nesse mesmo ano, apontava um novo sentido à economia. O carvão e a máquina a vapor, encurtavam distancias e libertavam o homem da escravatura.  A eletricidade iria produzir uma espantosa  revolução tecnológica. E os anos que se seguiram foram uma aventura que conduziu a Civilização a píncaros nunca antes sonhados.  Iniciava-se o reinado da economia industrial

Com a descoberta de importantes jazidas de carvão, petróleo e, mais tarde, gás natural, o homem foi capaz de incorporar esta energia na produção de alimentos, podendo afirmar-se como disse, muitos anos depois, Albert Bartlett que a agricultura da nova era consistiu na "transformação de petróleo em alimentos". E isto liga inexoravelmente a questão alimentar e a questão energética. Relação essa que não foi considerada por Malthus, e foi a razão principal para explicar o seu erro.  Ao contrário do que ele previa, nos duzentos  anos que decorreram desde a publicação do Ensaio, a população humana cresceu  exponencialmente, passando de mil milhões para sete mil milhões. Houve alimento suficiente, houve um conforto nunca antes imaginado, não apareceram predadores.

Hoje, tal como há 200 anos, o mundo volta a estar numa encruzilhada. Adam Smith e a concretização das suas ideias conduziram-nos à globalização. O avanço tecnológico e a crescente complexidade das redes que suportam a economia industrial, têm servido para criar a ilusão de que o homem tudo poderá fazer. E, com efeito, os limites ao crescimento foram torneados por diversas vezes. Mas o crescimento exponencial acelera o tempo, e a mente humana (cito Bartlett) tem dificuldade em entender as suas consequências.   Com efeito, nos 210 anos que decorreram entre 1800 e 2010 a taxa média anual de crescimento da população mundial foi de 0,93% , a que corresponde um  período de duplicação de 75 anos. A manter-se essa taxa, a população mundial será de 14 mil milhões em 2085. Se isso poderá acontecer ou não, é a discussão que vai pôr à prova a nossa capacidade de planear o futuro e sair da encruzilhada.

A economia industrial enfrenta fortes condicionantes. A escassez de recursos e a poluição mostram limites aos quais nos aproximamos velozmente. Foi Hubert King que pela primeira vez, em 1953, alertou para a finitude dos recursos fósseis. Em 1972, o estudo do Clube Roma, Limites ao Crescimento,  foi outro  alerta, sério e fundamentado. Em 2000, Colin Campbell e Jean Laherrère falam do pico de petróleo e das suas consequências. As alterações climáticas, resultantes dos gases com efeito de estufa, ameaçam alterar os frágeis equilíbrios da atmosfera e do mar.  As lições da crise atual demonstraram a fragilidade da economia e  do sistema financeiro baseado no crédito, e dependente do contínuo crescimento económico.

E não descortinamos o  que vem a seguir.. Mas começa a instalar-se a ideia de que esta economia não tem futuro e  necessitamos de uma nova economia. Uma economia que respeite os limites do planeta, que seja sustentável. Uma tal nova economia vai voltar a defrontar-se com o problema do crescimento da população. Num ambiente favorável, com alimento e sem predadores, a população de uma espécie geneticamente saudável cresce de forma exponencial. Mas a população humana não pode crescer dessa forma e tem de ser estabilizada. É verdade que as novas formas de controlo da natalidade muito eficientes e desculpabilizantes vieram alterar os pressupostos de Malthus, pois a força da paixão de que ele falava deixou de ser sinónimo de reprodução. Uma política de controlo  populacional tem de ser implementada a nivel mundial, e isso vai traz muitos problemas de ordem social, de ordem económica, de ordem moral. Mas resolvê-los é o desafio que temos pela frente. 

Passar da economia industrial para uma nova economia  é um processo de transição que sabemos necessário mas que ainda desconhecemos a forma como será feito e qual o caminho que terá de ser seguido. Apenas sabemos que a nova ordem tem de ser diferente da atual, e que tem de viabilizar a prosperidade da espécie.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

A Síria

Não é certamente por causa do gás sarin que os Estados Unidos se preparam para golpear a Síria e o seu exército. Após a postulação da doutrina Carter, na sequência da invasão do Afeganistão pela União Soviética em janeiro de 1980, o Médio Oriente (pela importância das suas reservas energéticas) passou a ser a fronteira do império americano. E a Síria é uma peça chave nessa região pois ali convergem importantes interesses estratégicos. Faz fronteira com Israel e com o Iraque, tem uma boa relação com a Rússia, país que por sua vez tem fortes interesses na Síria que é a sua única porta de entrada no Mediterrâneo. O pipeline que irá trazer o gás natural do golfo Pérsico para a Europa vai ter de passar pela Síria. O regime de Assad tem ligações ao Hezbollah que é um inimigo declarado de Israel. E o Irão (o principal inimigo a abater!) sai reforçado com Assad no poder. Para os americanos, que têm a capacidade e a vontade de atacar, o pretexto e a oportunidade de o fazer dificilmente serão desperdiçados. 

Quando, em setembro de 2009, eu e a minha mulher visitámos a  Síria, no fim  do ramadão, estava longe de imaginar a tragédia que se iria abater sobre um país que se nos revelou pacífico e acolhedor. No dia seguinte ao da nossa chegada a Damasco, passeámos tranquilamente pelas ruas à volta do Hotel Fardoss, na parte central de cidade. Comprámos bolachas, água, algumas lembranças, levantámos dinheiro no multibanco. Foi o primeiro contacto com o Oriente, muito comércio, muita gente na ruas, afinal uma cidade limpa, arrumada, que nada fica a dever a muitas cidades europeias.

A Síria de hoje ocupa parte de um território que foi o berço da nossa civilização. Foi nessa região que se cultivaram os primeiros cereais, que se domesticaram os primeiros animais e que floresceram as primeiras aglomerações de agricultores sedentários, que se ergueram as primeiras cidades. Ali confluíram povos de várias etnias,  fenícios, hebreus, amoritas, cananeus, assírios, arameus e hicsos, e ainda hoje convivem ao lado dos árabes, curdos, arménios, turcos, alauitas  e cristãos.

Em 64 AC, os romanos ocuparam a Síria que se transformou numa província do Império. Dessa presença restam impressionantes monumentos e cidades hoje dispersas por toda a região incluindo o Líbano, a  Jordania e Israel. Palmyra, uma joia no deserto, ficava  na rota das caravanas que traziam para o Mediterrâneo os produtos do Oriente. Nessa época, os cristãos criaram uma forte presença na Síria que ainda se mantém. São Paulo converteu-se ao cristianismo na estrada de Jerusalém para Damasco, cidade onde foi batizado por S. Ananias. Maloula,  a norte de Damasco, onde eu ouvi o Pai-Nosso recitado na língua de Jesus (o aramaico), é a terra de Santa Tecla e dos Santos Sérgio e Baco.

Os árabes, em 640 DC, conquistam a península Arábica  onde reinaram várias dinastias. Na Idade Média, depois do concílio de Clermont, o papa Urbano II prega as cruzadas pedindo aos cristãos para libertarem, a troco de indulgências, os lugares santos da influência do Islão. Os cruzados, populares e cavaleiros, marcham para leste, e conquistam Jerusalém. Erguem-se castelos, fundam-se éfemeros reinos cristãos (Antióquia, Acre, Jerusalém).  Ainda hoje o imponente castelo medieval de Krac-les-Chevaliers que se ergue numa colina próximo de Homs, na Síria, evoca esse tempo.

A partir do século XV, e após a queda de Constantinopla em 1453, toda esta vasta região passou a  integrar o império otomano. No final da primeira guerra mundial, com a derrota da Sublime Porta, a península Arábica (já cobiçada por ser uma importante área petrolífera)  foi repartida, num tratado secreto, entre ingleses e franceses. A linha reta divisória traçada no mapa anexo ao tratado, ainda hoje marca  a linha de fronteira  entre a Síria, que foi atribuída à França e o Iraque que foi atribuído à Inglaterra. E foi nessa altura que, por influência do movimento sionista, se decidiu a criação de um estado judaico na Palestina.

Em 1946, com uma população de 3 milhões de pessoas, a Síria declara a independência e torna-se um república parlamentar.  Após uma tentativa falhada de criação de uma união como Egito que vigorou entre 1958 e 1961, o poder é assumido, em 1971, pela família Assad (primeiro Hafez al-Assad depois, em 2000, Bashar al-Assad), do partido ba'ath. Hoje a população do país ascende aos vinte e três milhões de pessoas, e os efeitos dessa explosão demográfica, à semelhança do que se passa no Egito, levantam sérios problemas. A história recente, amplamente coberta pelos media, é sobejamente conhecida: as guerras com Israel, a ocupação dos montes Golan,  a primavera árabe, os rebeldes,  a  guerra civil, os refugiados, as armas químicas...
 
O fator energético é uma outra importante variável  com influência  nas causas da  guerra civil e na decisão americana de atacar a Síria. A Síria não é um grande produtor de petróleo nem de gás natural mas está prevista a construção de um importante gasoduto a passar pela Síria para transportar o gás natural proveniente das imensas reservas (as maiores do mundo!)  do Qatar e do Irão. Este gás  é essencial para a Europa, pois espera-se poder ser canalizado para o gasoduto Nabucco que a CE planeia construir para a Turquia, e, desta forma, reduzir a sua dependência da Gazprom. Ora, a Síria favorece os interesses da Rússia e do Irão e recusou o projeto de gasoduto apoiado pelo Qatar e pela Arábia Saudita. Países estes que, por sua vez, passaram a apoiar financeiramente os rebeldes. 

Obama já convocou a nova cruzada contra os Sírios e contra Assad. Entretanto a Europa hesita entre a fidelidade ao amigo americano e a avaliação que faz do risco do ataque. A Rússia está atenta aos seus interesses, e Putin não ficará de braços cruzados perante um ataque americano. A Turquia, país da Nato, a braços com milhares de refugiados, apoia o ataque pensando no problema curdo e na sua adesão à União europeia.  O silêncio da China  (quebrado a semana passada com um discreto aviso sobre as consequências económicas de um ataque americano)  é perturbador mas é revelador de que algo não está a ir ao encontro dos seus interesses.

 A América tem o poder de atacar e, neste momento, nenhum país ou força lhe pode fazer frente no plano militar. Nestas condições, a história mostra que os lobbies do armamento dificilmente serão contrariados, e o ataque vai ter lugar. Como tudo acabará é a grande incógnita. As mentes mais avisadas e mais sensatas temem que a Síria, que foi berço de uma civilização, possa vir a ser o cemitério dessa mesma civilização.

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

A Ginjinha da Amélinha

Para mim, as duas coisas mais importantes de Almeida são as muralhas e a ginjinha d´Amélinha. No resto, vejo muita ilusão e fingimento. São de faz de conta as guerras napoleónicas que se representam no final de cada verão, são virtuais as bicicletas que correm na  ciclovia,  e até o monumento ao 25 de Abril foi construído para fingir que Almeida é uma terra onde se lutou pela democracia e pela liberdade. O comércio é ficção, a pousada não é pousada,  e restaurantes no interior da muralha são coisa que não existe. Os museus, a cultura não passam de encenações, e os espetáculos do Zé Cid são  uma espécie de playback musical para adormecer o povo. A própria localidade, sem gente, é uma aldeia a fingir que é uma vila.

As muralhas estão mal tratadas, não se reparam, nalguns pontos crescem árvores e mato. Mas são sólidas e não é fácil estragá-las apesar de algumas tentativas que têm sido feitas para esse efeito. Lembro-me dumas peças decorativas colocadas do lado norte e talhadas num granito de cor desafiante, e do famigerado terceiro anel que é a ciclovia. Mas as muralhas infundem respeito, sente-se nelas o suor dos canteiros, com os guilhos e a maça, a arrancar a pedra da rocha mãe, o saber dos mestres escultores ornamentando, com os cinzeis, arcos, guaritas e frontarias, o labor dos pedreiros a aparelhar e assentar as pedras. E, na retaguarda, imagino o lápis dos arquitetos a desenhar o perfil dos baluartes e dos revelins, e os artilheiros a estudar a balística e a calibrar as peças. Foi muito dinheiro e foram muitas horas de trabalho ali investidas. Uma volta, a pé, às muralhas de Almeida é o percurso ideal para passear um cão ou para manter a forma física. Em vez de prescrever termas ou remédios, os médicos deveriam receitar muralhas de Almeida de manhã, á tarde e à noite. Podia optar-se pela dose normal dos 1350 metros, bordejando o  pano interior, ou pela dose reforçada de 2160 metros, contornando os baluartes.

A ginjinha d´Amélinha é um património real de Almeida, uma marca conhecida com uma imagem de qualidade, para muitos a melhor ginjinha do mundo. Tem a embalagem adequada, o rótulo é sugestivo, o preço é justo, a cor é inspiradora, o aroma e o sabor são insuperáveis. Acredito que tenha propriedades terapêuticas, pois um golo depois da refeição é garantia de uma boa digestão. E tenho um pressentimento de que também tem propriedades afrodisíacas, e deve fazer bem àquela função que os homens muito estimam. Sempre que vou a Almeida, abasteço-me da bebida, sou portador de encomendas, levo presentes para os amigos. Alguns deles já me pediram a receita, mas convém mantê-la em segredo, fazer disso um tabu, como é caso do famoso xarope da coca-cola.

Mas a Asae, dizem-me, já está na peugada da ginjinha. Querem acabar com ela como já acabaram com as matanças dos porcos e com o papel das listas telefónicas a embrulhar as castanhas assadas.  Acredito que venham a mandado da Sra. Merkel que já se deve ter apercebido das virtualidades do néctar e do perigo que ele representa para o bock e para os schnaps alemães. E eu estranho não ver uma declarada oposição das autoridades locais ou nacionais às perversas  movimentações para liquidar esta preciosidade.  No tempo antigo, quando a gente da beira ainda não tinha o sangue desnaturado, havia de tocar-se o sino logo que os fiscais da Asae assomassem nas Portas da Cruz, para recebê-los com forquilhas e estadulhos. E, dessa maneira, defender aquilo que nos pertence, a nossa ginjinha que é a melhor coisa que nos resta desde que a Europa nos derrubou o castelo, e a República nos levou o regimento e os soldados.

Ah, já me esquecia de referir outras coisas boas e dignas de registo e que fazem de Almeida um local único: os petiscos do Vitó, o restaurante da D. Irene, em Malpartida, e as Rondas de Almeida do Hernâni  (que ainda são a fingir, mas são uma boa ideia, não custam nada ao erário público, e não dependem dos fundos da Europa). Nunca esquecendo que Almeida está a dois passos de Fuentes de Oñoro que tem o Gildo e onde a gasolina é mais barata.  Aproveitem, e façam rapidamente uma visita a esta terra bendita, e brindem com um copinho da ginjinha da Amélinha. Antes que a  famigerada Asae nos prive desse gosto..

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Egito


Há apenas alguns anos, o Egito parecia ser um caso de sucesso. Em 1991 iniciou-se, neste país, um programa de reformas com o apoio do FMI que levou à privatização de centenas de empresas públicas. Na década seguinte, foram melhoradas as infra-estruturas e captados investimentos estrangeiros. O sucesso desse esforço teve como resultado um crescimento anual do PIB em torno de 5%, no período de 1995-1998, e de 6,3% em 1998 e 1999. E em 2008, o PIB ainda teve um crescimento estimado em 6,9%. O Egito nunca foi visto como um país de fundamentalismo islâmico, e era muitas vezes referido e elogiado, nos meios de comunicação, pelas suas posições moderadas em relação aos israelitas.

No início de 2011, o mundo sobressaltou-se com a chamada primavera árabe, expressão que designou os movimentos que se sucederam nos países islâmicos banhados pelo mediterrâneo, primeiro na Tunísia, depois no Egito, na Líbia, na Síria e no Iémene. Os políticos, pressurosos, entusiasmaram-se com estes movimentos. Falaram em democracia e defesa das liberdades, e logo idealizaram cenários futuros com modelos de governação ocidentais, aplicados aos países em turbulência. Javier Solana, muito otimista, disse que "Israel não será mais a única democracia da região, e deverá adaptar-se para poder garantir, de outro modo, a sua segurança", palavras que Mário Soares, de imediato, aprovou e considerou sábias (DN 22.2.2011).  Mas o Oráculo de Vence, escrevendo no Público (21.2. 2011) , evoca  as cruzadas  e lembra Avicena e Averrois para esclarecer: “o Islão não se converterá ao nosso modelo”.

Mas é preciso perceber aquele fenómeno que tem causas que não se explicam exclusivamente nem por razões históricas nem políticas. São sobretudo causas económicas (mas não só!), que têm muito a ver com a globalização e são sinais da inevitabilidade da rutura de um modelo nos limites, submetido a várias forças de pressão internas. Sem possibilidade de expandir-se, estas pressões fazem-no “rebentar pelas costuras”. Como força mais evidente temos a que resulta da pressão demográfica. O Egipto duplicou a sua população nos trinta anos do regime de Hosni Mubarak, passando  de 40 para 80 milhões de habitantes.  E, desde a queda do anterior presidente, em pouco mais de 2 anos, a população já aumentou para 84 milhões. Este rápido crescimento produziu uma população urbana e extremamente jovem (31,5% tem menos de 15 anos, e apenas 5% tem mais de 65 anos). A manter-se a atual taxa de crescimento populacional (cerca de 2% ao ano), a população do Egipto voltará a duplicar até 2050. E os problemas irão agravar-se, nomeadamente os alimentares, pois a terra arável, já escassa, vai continuar a ser ocupada por edifícios e outras estruturas, e sobrar menos para a agricultura. E, claro, o desemprego entre os jovens que são já uma geração "net", cada vez mais cultos e informados, continuará a grassar.

Outro factor, influenciador do desequilíbrio do sistema, tem a ver com as desigualdades sociais e com a pobreza, agravadas nos tempos que correm pela carência de recursos alimentares e pela dependência externa. A recente escalada dos preços de certos bens, (o trigo, o milho, o café, a soja, o algodão) provocou inflação e corroeu o poder de compra. Ora a democracia é um regime que convive melhor com a abundância do que com a escassez. É difícil explicar a um povo que o poder lhe pertence e pedir-lhe votos, quando ele passa fome. O pão alimenta a democracia, mas a democracia, só por si, não dá o pão.

Nas últimas décadas, o Egipto produzia e exportava petróleo, mas as exportações tendem a desaparecer: em 1990, produzia 900 mil barris por dia, dos quais metade destinava-se ao consumo interno, e a outra metade era exportada. Mas, entretanto, a produção declinou e o consumo aumentou. Atualmente produz 700 mil barris por dia, que já são escassos para o consumo interno. De tal forma, que o Egito já é, desde 2011, importador petróleo, e o que era uma receita é agora uma despesa. A exploração e produção de gás representam uma das áreas promissoras da economia. A expectativa é que essa promessa se mantenha, com base nos planos de investimento já aprovados, e justificadas por recentes descobertas de novas reservas de gás.

O problema alimentar, já referido, é outro grave problema de um país que já foi o celeiro do mundo mediterrânico , o "presente do Nilo" de que falava Heródoto, é hoje um país que enfrenta um futuro sombrio no que respeita à produção de alimentos. O Egito é um dos maiores importadores mundiais de cereais (trigo e milho). Segundo estatísticas do ministério egípcio do petróleo, este país importa 40% da sua alimentação e 60% do trigo que consome. Problemas climáticos a nível mundial, e a produção de bio-combustíveis, que estão na origem da atual escalada dos preços das matérias primas, só têm servido para agravar a situação.

No Egito, o turismo representa indiretamente 11% do PIB, mas a crise interna e a crise mundial, aliadas aos efeitos do elevado preço do petróleo nas transportadoras aéreas, estão a afetar o sector que emprega 3 milhões de pessoas. Fala-se que em receitas de turismo, e durante a presente crise, o país perde 300 milhões de dólares diários.Uma outra importante fonte de riqueza deriva das tarifas cobradas aos cerca de 15000 navios que, por ano, passam pelo canal de Suez. A eventualidade do encerramento desta estratégica via marítima constituiria um tragédia não só para o Egito mas para todo o mundo, e as consequências seriam um forte agravamento da crise económica global.

Aquilo que se está a passar no Egito, é um afloramento da gravidade da situação mundial. Não é apenas uma questão de regime político, e quem vier a seguir vai ter de enfrentar exactamente os mesmos problemas, ou até agravados. Porque esta é essencialmente uma questão que reflete os problemas e as contradições da globalização. As raízes do problema são muito complexas e a economia não as vai resolver, porque a economia gere os recursos mas não os cria, fala de população mas não a regula, exige insistentemente o crescimento mas não sabe como promovê-lo.

O Islão não se converterá ao nosso modelo, pelas razões que apontou Eduardo Lourenço, mas não só. Os problemas dos países árabes são o sintoma de uma doença mais profunda, e continuarão, por muito tempo, a ocupar o nosso dia-a-dia. E a Europa e o Mundo não podem alhear-se do drama egípcio, porque num mundo global, uma perturbação num só lugar afetará todo o planeta.



segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Informação


Na calma destas férias, retorno a Alfred Hitchcock, o meu realizador de culto, e revejo o filme  O homem que sabia demais, onde se conta a história de um médico americano em viagem por Marrocos, que, na posse de um segredo, vê o seu filho raptado e, ele próprio, corre risco de vida. Saber demais é ter informação que os outros não têm (informação privilegiada), e isso dá um grande poder (e uma grande responsabilidade!) a quem a possui.

A informação é um bem transacionável. Na minha vida profissional eu fui um produtor de informação e lidei de perto com este estranho produto cujas características  fui obrigado a estudar. Em primeiro lugar, aprendi a conhecer o valor da informação. Contrariamente a outros produtos é muito difícil estabelecer o preço da informação. Na verdade, ela não tem preço. Num momento pode valer tudo e no momento seguinte pode não valer nada. Por exemplo, a informação de que a cotação de uma ação na bolsa vai subir, só tem valor antes disso acontecer, depois disso não vale nada. O valor da informação está dependente da sua difusão: quanto mais circula menos valiosa se torna. Ora sendo a informação um bem muito dificil de produzir mas muito fácil e muito barato de reproduzir, é necessário ter com ela cuidados muito especiais, se não a queremos desvalorizar.

Por outro lado, a qualidade da informação é muito difícil de aferir. Como posso saber que uma informação é boa ou má, rigorosa ou defeituosa, falsa ou verdadeira?  Associa-se essa qualidade ao valor da  fonte que a origina ou que a produz. Por isso a imagem de uma fonte de informação é um bem muito valioso e que deve ser bem preservado. A imagem de uma empresa ou de uma entidade que divulga ou produz informação é o seu maior ativo. A essa imagem têm de estar associados o rigor, a independência e a transparência.

Aprendi também que a informação dinâmica, evolutiva e comparável  é mais valiosa do que a informação isolada e estática. É a diferença entre o filme e a fotografia. A informação evolutiva permite definir tendências, fazer previsões, estabelecer objetivos, avaliar performances. As bases ou bancos de dados são construídas e mantidas respeitando este pressuposto, e estão na origem de um próspero negócio suportado por potentes ferramentas informáticas de exploração desses dados e das relações entre eles (data mining).

O consumo de informação (tal como o consumo de drogas) é fortemente viciante. E  isto é válido tanto para quem a utiliza na sua vida profissional, como para o cidadão comum que a consome no seu dia a dia. Para quem toma decisões, lidera ou governa, a sua principal atividade consiste em gerir informações. E, sem informação, o gestor fica desorientado, sente-se inseguro, torna-se vulnerável. Por isso, a procura desesperadamente sempre que ela lhe falta.  O pacato cidadão que compra o Expresso, ao sábado de manhã, para preencher um vazio mental, sofre da mesma carência do fumador que necessita do cigarro matinal, ou do viciado em café que não pode passar sem a sua bica.  Esta adição está na base do sucesso de muitos jornais e revistas, programas de rádio e televisão.

A informação confere poder a quem a possui. Todo o processo que envolveu o americano Edward Snowden é ilustrativo da importância e do poder da informação. Neste caso estão em causa esquemas desenvolvidos pelo governo dos Estados Unidos que estão a criar enormes bases de dados para identificar comportamentos anómalos, visando melhorar a segurança dos cidadãos. Mas a complexidade destes instrumentos levanta delicadas questões éticas, e constitui um risco cuja vulnerabilidade foi exposta pelo jovem que os revelou ao mundo.

A informação sobre a opinião pública é um caso que me interessa particularmente. Os resultados de uma sondagem com informação sobre opinião dos cidadãos têm um forte efeito reflexivo sobre as opiniões desses mesmos cidadãos e podem alterar os seus comportamentos. Por isso existem organismos para controlar a realização de sondagens e a sua publicação. Mas existe ainda uma grande opacidade no sector e muita leviandade na análise e na divulgação dos resultados feita pelos jornalistas. 

No mundo em transição, a informação e o seu controlo vão ter um papel muito importante. Os meios digitais estão a alterar rapidamente a forma de produzir, divulgar e consumir informação. As consequências disso no nosso futuro ainda são mal conhecidas. Mas serão, seguramente, fortemente impactantes.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Comunicar: do Gesto à Internet

O gesto, a fala e mais tarde a escrita, terão sido as primeiras formas de comunicação na sociedade dos humanos. Ao comunicar com os seus semelhantes, o homem exprime-se e partilha conhecimentos, experiências e emoções, ordena, comanda, enfim, relaciona-se socialmente e é capaz  de trabalhar em equipa.  Através do discurso, um indivíduo pode dirigir-se a um grupo de seus iguais: o público. O teatro, a música, o canto,  as narrativas orais, e outras formas de expressão artística, como a  pintura e a escultura, são formas primitivas de comunicação pública. Mais recentemente, o homem recorre  a outros meios para comunicar com os seus semelhantes, nomeadamente  a Imprensa, a Rádio, a Televisão e a Internet. São os meios de comunicação social.

A comunicação social moderna que utiliza os meios de massa, nasceu com Gutemberg e com a invenção da imprensa. O documento impresso, multiplicado em grande número é o primeiro mass medium capaz de veicular uma mensagem (rigorosamente a mesma mensagem!), simultaneamente  a um elevado número de pessoas: o público alvo. Meio alvo e mensagem são os três elementos básicos da comunicação de massas. A imprensa deu um grande impulso à globalização e teve um grande efeito social: permitiu imprimir a Bíblia mas também as bulas de Lutero que estiveram na base da cisão da Igreja de Roma.

Com o aparecimento da imprensa criaram-se as condições para difusão da ciência e da informação até essa altura  guardada em manuscritos, em papiro ou pergaminho, nas bibliotecas dos conventos. Nasceu a literatura, no sentido com que hoje a entendemos. A circulação dos livros e dos folhetos criou, por sua vez, a opinião pública. A nova forma de comunicar, facilitando a difusão de ideias nascentes, foi vista como perigosa, e a edição de obras impressas passa a ser censurada e controlada. No mundo ocidental, o poder das ideias era, no final do século XV, detido pela Igreja. E é a Igreja quem, em primeiro lugar, sente esse poder ameaçado. Processos como o de Lutero, de Galileu, e até a própria Inquisição são reações da Igreja ao alastrar incendiário de novas ideias difundidas pela imprensa ... A Renascença resulta desta nova capacidade de revisitar e difundir a filosofia e o pensamento clássico. O grande desenvolvimento da ciência, o iluminismo, os enciclopedistas são outras consequências da nova forma de comunicar...

O outro salto tecnológico que influenciou a comunicação, já no século XIX, foi a descoberta da eletricidade, do telégrafo e  das ondas hertzianas capazes de transportar, sem fios,  a distância, a voz humana (a rádio) e as  imagens (a televisão). Os dias da rádio difundiam  a informação, criaram opinião,  geraram movimentos sociais e políticos. Popularizaram a música e o teatro falado, criaram os artistas da rádio. A televisão mudou o mundo e, ao entrar nas nossas casas e participar no nosso quotidiano, alterou definitiva e irreversivelmente a nossa maneira de viver. A sociedade atual é a sociedade da televisão. Mas a Internet já está a alterar este paradigma.

A publicidade reforçou o poder e a influência dos meios de massas.  Na sociedade de consumo da era industrial a publicidade prospera e é utilizada para construir a imagem das marcas.  Esta é a época de ouro dos criativos como David Ogilvy, Bill Bernbach nos Estados Unidos, Jacques Séguéla e os irmãos Charles e Maurice Saatchi, respetivamente, em França e na Inglaterra. Constroem-se grandes empresas associadas a estes homens, verdadeiros artistas da criação de marcas.

A comunicação social integrou-se no sistema económico, e é hoje um próspero sector que emprega milhões de pessoas em todo o mundo. É um forte poder  regulador de outros poderes: o económico,  politico e judicial. Influencia-os e é influenciada por eles. É, pois, importante olhar com mais atenção para este sector para perceber o seu papel  no mundo em transição. É o que tentarei fazer a seguir.


segunda-feira, 29 de julho de 2013

Heterotopias

Eu ainda me lembro do tempo em que a vida das pessoas decorria toda ela dentro de um círculo com meia dúzia de quilómetros de raio, e onde  tudo se situava: a terra em que se trabalhava, o comércio onde se compravam os géneros, a taberna onde se bebia um copo de vinho. Era nesse espaço que se encontrava o homem ou a mulher para casar, ali  nasciam os filhos, e ali se aprendia a ler e a escrever... As raras aventuras que levavam as pessoas para fora desse círculo eram a a tropa e a emigração, esta inicialmente sem retorno. Este era um espaço, balizado pela igreja e pelo cemitério, onde havia lugar para o sagrado e para o profano. Os amigos (e os inimigos!) habitavam todos esse espaço,  as alegrias explodiam nele, e as lágrimas nele se vertiam.

Hoje nós vivemos em muitos espaços: o da nossa família, o da nossa rua, o do nosso clube, o do nosso trabalho, o da nossa associação, do nosso partido, o também o espaço das relações que perduram pela vida fora (os amigos de infância, da tropa, da faculdade, do Erasmus...). São espaços que se interpenetram e que desdobram o nosso eu,  criando vários "eus" que pouco ou nada têm a ver uns com os outros. E, sobretudo os mais jovens, estão a viver agora no seu espaço virtual do facebook, espaço ainda mal percebido mas vivo e atuante e até perturbador. Porque no espaço do facebook já não é o verdadeiro eu mas um outro eu, um alter ego, que  ali se representa. Um eu que comunica sem se expor, que se afirma sem emoções...que cria amizades sem presença, que acabam por deixar um vazio e ser fonte de neuroses.

Com tantos espaços, cada um com seu significado, vivemos numa heterotopia,  como se pertencêssemos simultâneamente a varias tribos, ou a diferentes clãs. Neles se criam laços afetivos, e neles se estabelecem relações de amizade. A cada um desses espaços corresponde uma ambiência afetiva. E são os laços afetivos que preenchem esses espaços que os tornam agradáveis e até habitáveis.  Esses espaços acolhem as nossas raízes, e as amizades neles criadas são a seiva  que nos alimenta o espírito.  Sem amigos a preenchê-los os nossos espaços não têm sentido, e acabam por desparecer. E a vida torna-se mais vazia e depressiva. Mas conciliar esta multiplicidade de pertenças pode trazer dificuldades, pode criar ambivalências e conflitos e pode ser fonte de angústia.

A família, é o espaço mais estruturante por excelência, por ser mais duradouro e permanente. Os laços de sangue, a história e a educação comuns, são motivos agrgadores.  O espaço familiar não é descartável, e necessita de uma atenção especial. Os familiares não se escolhem, os amigos sim. A amizade no espaço familiar pode ser muito forte e enriquecedora. E a falta dessa amizade é quase sempre perturbadora, e geradora de instabilidade. No espaço heterotópico, a família tende a diluir-se, e isso pode também ser uma fonte de insegurança.

Um homem com muitos espaços pode ser um homem sem espaço nenhum. Para encontrar o rumo, na complexidade das dimensões da heterotopia, o homem do futuro vai precisar de  um novo sentido de orientação e de uma nova bússola para não se perder no caminho!

segunda-feira, 22 de julho de 2013

O Mundo em Transição

Deus criou o homem à sua imagem, e, depois, criou a mulher. E disse-lhes:
"Crescei e multiplicai-vos. Enchei e dominai a Terra"  (Gn 1, 28)
O homem cumpriu exemplarmente os desígnios de Deus. Possívelmente, excedeu-se !
E, angustiado, pergunta: - E agora?

Todo o ser humano tem um livro dentro de si. Mas nem todos são capazes de deixar que ele amadureça nas suas entranhas, e de o trazer à luz do dia. Este Mundo em Transição é uma parte do livro que eu sempre trouxe dentro de mim. Principiou a ser escrito quando o tempo se tornou confuso e o futuro se começou  a apresentar como incerto e perigoso.

No livro reuni algumas das reflexões, publicadas neste blog, sobre a Civilizaçao Humana e o seu futuro. Podem ser um alerta para essa armadilha que é o crescimento exponencial, e para essa outra armadilha que é a complexidade tecnológica.

Não sei se será um livro tranquilizante ou se, pelo contrário, será inquietante. O mais importante é que ele sirva para nos ajudar a compreender o mundo à nossa volta. E também não sei dizer se é um livro de Economia ou de Ecologia ou de Física ou de Demografia. Talvez  o tema deste livro seja a Antropologia, pois o Homem é a medida de todas as coisas.

O Homem, esse desconhecido, como lhe chamou Alexis Carrel, foi a espécie que Deus escolheu para encher e dominar a Terra, e à qual Teilhard Chardin havia de se referir como o Fenómeno Humano. E, de facto, trata-se de um fenómeno. Desde logo, o homem  tem um corpo esbelto, quase a suprema perfeição da criação. Uma postura vertical, grande agilidade dos membros superiores, olhos virados para a frente, visão em profundidade, corrida veloz. As mãos do homem são a obra prima da criação, ferramentas sensíveis, possantes, destras e delicadas. Mãos que comandadas por um cérebro inteligente haveriam de cultivar a terra, construir cidades, criar obras de arte, tocar melodias, escrever a História. A fala primeiro, depois o alfabeto, a escrita velha, agora a Internet, a  escrita nova, permitiram estabelecer a teia que levou o Homem a dominar a Terra.

A Terra é, hoje, o Planeta do Homens.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

O Tempo numa Cápsula

À primeira vista, a Guarda é uma cidade improvável: não tem recursos naturais de nenhum tipo, não tem riqueza agrícola nem florestal, não tem cursos de água a banhá-la, tem um clima severo, com invernos muito frios e verões quentes e secos. A sua existência como cidade é, por isso, um desafio à adversidade do seu contexto natural. A localização, no caminho que liga Lisboa à Europa Central, é a sua única vantagem que teve que disputar com Pinhel e Trancoso. Não terá sido fácil a a vida dos seus moradores. Ainda hoje, se percebe ser a Guarda uma cidade de gente pobre e simples. Escasseiam na cidade os palacetes e os solares (como os vemos, por exemplo, em Pinhel), a atestar que esta nunca foi terra próspera nem terra de senhorios.  A Guarda foi sempre uma cidade de resistentes, quase diria de sobreviventes. Mas, talvez por estas razões, a Guarda é uma cidade de gente trabalhadora, empreendedora e criativa.

Quem, no final da tarde do passado dia 1 de julho, passasse junto à Torre de Menagem da cidade altaneira, numa colina sobranceira ao Cemitério Municipal,  veria um conjunto de personalidades vestidas a rigor alinhadas num circulo à volta de uma lápide de granito, e julgaria estar perante um ajuntamento que ali estaria a encomendar a Deus a alma de algum defunto. De facto, naquela envolvência, a cerimónia mais parecia um ofício fúnebre do que aquilo que era realmente. Era  uma festa do Clube Escape Livre a comemorar uma iniciativa bem original: enterrar num contentor quarenta depoimentos de personalidades ligadas à Guarda sobre o presente e o futuro da cidade, com a intenção de os voltar a trazer á luz do dia, em 2050.

Naquela entardecer de verão, enterrou-se o tempo dentro de uma cápsula. O conceito de aprisionar o tempo é já em si mesmo paradoxal, pois o tempo não se pode aprisionar. O tempo será sempre o nosso  carcereiro, e nunca o nosso prisioneiro. Porque o tempo condena-nos ao envelhecimento, joga connosco ao gato e ao rato, dá-nos a ilusão de que escolhemos o nosso destino, mas é inexorável logo que optamos ou temos a ilusão que optamos por um caminho, e não nos dá uma segunda oportunidade. E nos nossos dias de tempo acelerado, e com um futuro incerto e perigoso, a tentação de aprisionar o tempo é grande.

O tempo da nossa mente não é o tempo entrópico que tudo enreda, mas um tempo linear que tem outra lógica e outra conveniência. O que estava dentro daquela cápsula não era o verdadeiro tempo mas sim o nosso  tempo,  uma efígie de palha que simboliza e imita o outro.  E encontrar essa grosseira imitação  do Chronos vai ser a surpresa daqueles que, daqui a 37 anos, fizerem a exumação do conteúdo da cápsula. O tempo, o verdadeiro, sorriu com desdém, na cerimónia do dia 1 de julho em que se enterrou a cápsula, e vai voltar a sorrir quando for desenterrada e aberta, em 2050. E os nossos netos vão rir-se da nossa cegueira e vão espantar-se da nossa ignorância, e do nosso pretensiosismo de querer aprisionar o tempo.

Quando, em 1900, na euforia da entrada no século XX, se fizeram e publicaram as previsões para o ano 2000, havia uma grande esperança,e acreditava-se num progresso sem limites. Por exemplo, a televisão foi prevista, previa-se que se poderiam ver imagens a distância, e  alguém terá antecipado que, cem anos depois, seria possível assistirmos, nos sofás das nossas salas, às danças das tribos de indígenas (amenizo a palavra selvagens, no original) e ao rufar dos seus  tambores no coração da África. Ou seja, acreditava-se no progresso técnico mas não na evolução das mentalidades. Evolução tão grande (e tão rápida!) que haveria de colocar o descendente direto de um desses indígenas africanos a governar a nação mais poderosa do mundo!

Subtilezas ou partidas do tempo?

segunda-feira, 17 de junho de 2013

A eletricidade


A eletricidade começou por ser uma curiosidade, um entretenimento dos salões do início do século XVIII. Mas quando, em 1745, Musschenbroek aprisionou a centelha fugaz na famosa garrafa de Leiden,  e quando Alessandro Volta, com a sua pilha, conseguiu criar uma corrente elétrica contínua, estavam lançadas as bases de um conhecimento novo, algo que iria revolucionar o mundo. No início do século XIX, um modesto encadernador de livros, Michael Faraday, estuda a ligação entre a eletricidade e o magnetismo e demonstra que uma corrente eletrica pode produzir movimento. Era o princípio do motor elétrico.  O electroíman, baseado no mesmo princípio, foi a invenção que originou o telégrafo, o qual, em 1866, haveria de pôr, pela primeira vez de forma estável, dois continentes em contacto direto através de um cabo submarino, e tornar o mundo muito mais pequeno.  Estava dado o impulso mais extraordinário para a globalização.

No final do século XIX, em Nova Iorque, Thomas Edison e Nikola Tesla , disputam a solução para a distribuição da corrente elétrica através de redes.  Estavam em causa aspetos técnicos e importantes interesses económicos. Tesla, um enigmático engenheiro sérvio, propondo a corrente alterna, contra a corrente contínua de Edison, haveria de ganhar a guerra das correntes, como ficou conhecida. A construção da central hidroelétrica de Niagara levou essa nova forma de energia a muitos lares americanos. A eletricidade passou a fazer parte da economia e do nosso quotidiano, e, a partir daí, o Mundo nunca mais voltou a ser o mesmo.

A eletricidade alumiou a noite, e alterou o ciclo das horas; libertou a mulher das pesadas e rotineiras tarefas do lar; fez nascer o ascensor elétrico responsável pelo arranha céus e pela cidade moderna; produziu a sétima arte e e ligou os continentes. Na exposição mundial de Paris de 1900 o mundo extasiou-se, e acreditava que o progresso não teria fim. Sem a eletricidade, a civilização retrocederia dezenas ou centenas de anos. Aliás, a vida como é vivida pelos jovens de hoje que nunca conheceram outra forma de viver, simplesmente já não seria possível sem a eletricidade, tal o desenvolvimento que ela permitiu. E que já se tornou irreversível.

Entretanto, a descoberta das ondas eletromagnéticas  abriu o caminho à comunicação sem fios, a distância. A eletrónica e o transitor foram o passo seguinte que conduziu à descoberta da a rádio e da televisão, que permitiram construir o circuito integrado miniaturizado, que, por sua vez, está na base da informática e a Internet.  E tudo isto apenas começou há pouco mais de um século!

A eletricidade, em boa verdade, nem sequer é uma forma de energia, mas apenas um transportador de energia.  De certo modo, ela é uma ferramenta que permite  unificar distintas formas de energia (hídrica, carvão, nuclear, gás, petróleo, eólica, solar..), e transportá-las a grande distância de uma forma conveniente, limpa e eficaz. No plano tecnológico, esta ferramenta constitui a maior invenção da humanidade e é a principal responsável pela globalização. Como tecnologia, a eletricidade é uma conquista irreversível. Como ferramenta, ela repousa sobre a rede elétrica que nalguns casos começa a estar obsoleta e difícil de manter, o que pode constituir um risco.  Mas a matéria prima que ela transforma, transporta e entrega ao domicílio é a energia. E se um dia, na parte inferior do processo, houver uma rutura no fornecimento dessa matéria prima, e as lâmpadas das nossas casas se apagarem, se o ascensor não subir e se o frigorífico deixar de funcionar, a culpa não é da eletricidade.

E se esse dia alguma vez chegar, a economia sofrerá um tsunami.



segunda-feira, 3 de junho de 2013

Um Prémio Autista


O Centro de Estudos Ibéricos da Guarda concede todos os anos um prémio, a que chamou o "Prémio Eduardo Lourenço", destinado a “galardoar personalidades ou instituições com intervenção  relevante no âmbito da cultura, cidadania e cooperação ibéricas “ (sic). Este ano empenhei-me pessoalmente (eu, e não só!) na apresentação da candidatura do Dr. Álvaro Carvalho, médico humanista, homem da cultura viva,  escritor e exemplar cidadão, por entender que se ajustava perfeitamente ao perfil visado no regulamento do referido prémio. Mas sendo o júri predominantemente constituído por gente de borla e capelo e sendo o meu candidato um candidato futrica (é este o termo que os doutores usam em Coimbra para designar a população civil), eu sabia, à partida, que ele não teria grandes hipóteses de ser escolhido.

Este ano, com alguma surpresa, o júri escolheu premiar o Sr. Jerónimo Pizarro, um professor universitário colombiano, apresentado como um estudioso de Fernando Pessoa. Esta atribuição vem na sequência da realização da feira do livro de Bogotá, fortemente publicitada na imprensa portuguesa, e visitada pelo nosso Presidente da República na sua recente deslocação à Colômbia. Não conheço a obra do premiado, nem questiono o seu valor, mas ficam no ar algumas interrogações, não sobre o seu mérito pessoal e literário mas sobre as motivações (pensando no regulamento do prémio)  que teriam levado os jurados a escolhê-lo.

Dizem-me que, este ano, estiveram em apreciação quase duas dezenas de candidaturas, facto angustiante para um júri, que, ainda por cima, teve de decidir depressa. Ao atribuir o prémio ao ilustre desconhecido,  Sr. Jerónimo Pizarro, o ilustrado júri do Centro de Estudos Ibéricos da Guarda faz-me lembrar os guardas pretorianos do imperador Calígula, que depois de o assassinarem, durante os jogos no circo Romano, hesitando na escolha do seu sucessor, e encontrando, por acaso, Claudius, um velho gago e sem ambição, da gens de Augusto, logo concluíram que  aquele encontro vinha mesmo a calhar e não tinham de  procurar mais. E de imediato, ali mesmo, o fizeram imperador.

Na minha opinião, a escolha do premiado teve sobretudo a ver com Fernando Pessoa. Pessoa é o poeta inquestionável, ainda por cima, querido de Lourenço e estudado por ele. Em Portugal, Pessoa é a personalidade do consenso, quase uma conveniência cultural. E a sua projeção além fronteiras enche-nos de orgulho, e aconchega-nos o ego. No nosso meio cultural, é de bom tom citar Pessoa, recitar Pessoa, estudar Pessoa, invocar Pessoa. E, contudo, convém lembrar que o poeta dos heterónimos simboliza a resignação dos portugueses, é o expoente maior da nossa depressão coletiva, uma espécie de espelho de um país, falhado e desassossegado.

Eu concluo, pois, que quem foi premiado pelo júri do CEI não foi Pizarro, foi Pessoa. E, neste pressuposto, não deixa de ser curioso constatar que no ano passado, Lourenço ganhou o Prémio Pessoa, e este ano, Pessoa ganhou o Prémio Lourenço. Atribuição que, tanto num como no outro caso, é honrosa para os premiados, mas que nada acrescentou ao seu  prestígio e grandeza, desde há muito afirmados e confirmados. Mas, como convinha, não houve sobressaltos, ficou tudo em casa, foi uma espécie de autismo cultural. Tudo, culturalmente, correto...

Ainda a este propósito, é oportuno recordar uma história exemplar: o concurso literário que a Real Academia das Ciências levou a efeito no longínquo ano de 1887, ficou famoso não pela obra premiada,  O Duque de Viseu de Henrique Lopes de Mendonça, mas pela que foi preterida, A Relíquia de Eça de Queirós. Foi Pinheiro Chagas que relatou o parecer  a justificar a decisão do júri, e este facto deu a Eça o ensejo de responder, escrevendo, com a sua fina ironia,  algumas das mais belas páginas da literatura portuguesa.

Henrique Lopes de Mendonça foi um distinto oficial da Armada e um notável historiador, poeta, romancista e dramaturgo, e foi o autor dos versos d'A Portuguesa. E não mereceu a desdita de ter sido galardoado, naquelas circunstâncias, com o prémio D. Luís do concurso da douta Academia.

segunda-feira, 27 de maio de 2013

O Lugar da Europa

De vez em quando, o Filósofo de Vence desce ao povoado e vem iluminar com o brilho das  suas ideias e com a nitidez do seu discurso a nossa tristonha obscuridade. Desta vez, numa entrevista ao Público, ajudou-nos a perceber a teia em que a Europa se encontra enredada. Mostrou-nos a lógica dos acontecimentos, e com a sua habitual clarividência, antecipou a História. Disse-nos o óbvio: que a Europa já não é o centro do Mundo, que está desesperadamente à procura de reencontrar esse lugar perdido, que ainda não se conformou com essa perda; que acabou a Europa das nações, mas mantém-se a mentalidade das nações, e que desfeitas as partes ainda não se reconstruiu o todo. Falou dos protagonistas, de Merkl, de Hollande e de Sarkozy, falou da Globalização, e concluiu que a Europa reincarnou na América, mas que a América não é a Europa e não a substituiu. Falou do fim das guerras e das guerras sem fim. Ele, como ninguém,  tem seguro o fio da história, e pode, com essa segurança, anunciar-nos o fim de um ciclo europeu.

Eduardo Lourenço é um observador atento, e tem uma cultura soberana. Ele é um ativo da nação, e mantém aos 90 anos uma lucidez que nos espanta e, ao mesmo tempo, nos conforta. No passado dia 20 de maio, ao fim do dia, no Centro Nacional de Cultura, a propósito da reedição do livro "Os Militares e o Poder", falou-nos, mais uma vez, de Portugal de do seu destino. Centrou a sua análise na reconversão da Pátria que se operou com o 25 de Abril, em que Portugal se despiu das suas colónias que lhe davam sentido e até razão de ser. Depois disso, Portugal não mais seria o mesmo, e não mais será o mesmo. Com a língua como único património diferenciador, este é um país do faz de conta. Resta-nos a nostalgia de um Camões do Império sonhado, e de um Pessoa angustiado e angustiante  na eterna procura dos retalhos desse sonho desfeito.

A verdade é que o mundo vive hoje numa encruzilhada e a Europa também.  Lourenço, o magnífico, talvez tenha em seu poder um novelo de Ariadne que sirva para nos guiar para a encontrar o caminho para a saída crise, ou talvez já tenha intuido que não conduzirá a nenhuma saída, porque o labirinto não tem saída.  Porque ele faz o diagnóstico mas não arrisca mais do que isso. Deixa  para nós o prognóstico, como se nos convidasse a adivinharmos o que está do outro lado da crise. Mas foi ele mesmo que um dia nos disse que esta crise não tem "outro lado".

A Europa não tem gente, não tem indústria não tem energia.  Tem a cultura, mas de que lhe vale a cultura?  O simples custo de a preservar pode ser demasiado elevado. Tem um serviço social sem paralelo no mundo, mas que, sabe, não poderá manter. Está empenhada em reduzir a poluição, em aumentar a eficiência energética,  e aposta nas energias renováveis.  Mas nesta cruzada, a Europa faz o papel do cavaleiro da triste figura, esgrimindo com lanças contra moinhos de vento, quando a Coreia do Norte aponta armas nucleares ao Ocidente, e a China polui em quatro meses o que a Europa, esforçadamente, deixa de poluir  em 10 anos! Mas o maior perigo para a Europa são as hostes de famélicos que se perfilam e espreitam nas suas fronteiras preparados para abocanhar a presa, ou o que dela restar, ao mais pequeno descuido.

A Europa já não lidera o Mundo, mas quem o lidera? A América, afogada nas sua responsabilidades de guardião da ordem global, que tem de manter um exército longe do seu território, e faz lembrar o decadente  Império Romano dos séculos e III e IV? A China que carrega o peso de uma civilização milenar, e tem de gerir as contradições  entre a sua cultura e o modelo económico que o Ocidente lhe impôs? A Rússia que perdeu o seu tempo e o seu espaço, e que hesita entre aliar-se à China ou à Europa? Todos estes protagonistas sabem que a resposta ainda não é definitiva, mas todos eles pressentem que o futuro do mundo se joga no Médio Oriente,  no eixo que vai de Israel  ao Paquistão.

No próximo dia 6 de junho, Eduardo Lourenço estará na Guarda para falar de Portugal e do seu destino. Desta vez, terá a vida facilitada pois já tirou a conclusão: o destino de Portugal é o destino da Europa.