segunda-feira, 17 de junho de 2013

A eletricidade


A eletricidade começou por ser uma curiosidade, um entretenimento dos salões do início do século XVIII. Mas quando, em 1745, Musschenbroek aprisionou a centelha fugaz na famosa garrafa de Leiden,  e quando Alessandro Volta, com a sua pilha, conseguiu criar uma corrente elétrica contínua, estavam lançadas as bases de um conhecimento novo, algo que iria revolucionar o mundo. No início do século XIX, um modesto encadernador de livros, Michael Faraday, estuda a ligação entre a eletricidade e o magnetismo e demonstra que uma corrente eletrica pode produzir movimento. Era o princípio do motor elétrico.  O electroíman, baseado no mesmo princípio, foi a invenção que originou o telégrafo, o qual, em 1866, haveria de pôr, pela primeira vez de forma estável, dois continentes em contacto direto através de um cabo submarino, e tornar o mundo muito mais pequeno.  Estava dado o impulso mais extraordinário para a globalização.

No final do século XIX, em Nova Iorque, Thomas Edison e Nikola Tesla , disputam a solução para a distribuição da corrente elétrica através de redes.  Estavam em causa aspetos técnicos e importantes interesses económicos. Tesla, um enigmático engenheiro sérvio, propondo a corrente alterna, contra a corrente contínua de Edison, haveria de ganhar a guerra das correntes, como ficou conhecida. A construção da central hidroelétrica de Niagara levou essa nova forma de energia a muitos lares americanos. A eletricidade passou a fazer parte da economia e do nosso quotidiano, e, a partir daí, o Mundo nunca mais voltou a ser o mesmo.

A eletricidade alumiou a noite, e alterou o ciclo das horas; libertou a mulher das pesadas e rotineiras tarefas do lar; fez nascer o ascensor elétrico responsável pelo arranha céus e pela cidade moderna; produziu a sétima arte e e ligou os continentes. Na exposição mundial de Paris de 1900 o mundo extasiou-se, e acreditava que o progresso não teria fim. Sem a eletricidade, a civilização retrocederia dezenas ou centenas de anos. Aliás, a vida como é vivida pelos jovens de hoje que nunca conheceram outra forma de viver, simplesmente já não seria possível sem a eletricidade, tal o desenvolvimento que ela permitiu. E que já se tornou irreversível.

Entretanto, a descoberta das ondas eletromagnéticas  abriu o caminho à comunicação sem fios, a distância. A eletrónica e o transitor foram o passo seguinte que conduziu à descoberta da a rádio e da televisão, que permitiram construir o circuito integrado miniaturizado, que, por sua vez, está na base da informática e a Internet.  E tudo isto apenas começou há pouco mais de um século!

A eletricidade, em boa verdade, nem sequer é uma forma de energia, mas apenas um transportador de energia.  De certo modo, ela é uma ferramenta que permite  unificar distintas formas de energia (hídrica, carvão, nuclear, gás, petróleo, eólica, solar..), e transportá-las a grande distância de uma forma conveniente, limpa e eficaz. No plano tecnológico, esta ferramenta constitui a maior invenção da humanidade e é a principal responsável pela globalização. Como tecnologia, a eletricidade é uma conquista irreversível. Como ferramenta, ela repousa sobre a rede elétrica que nalguns casos começa a estar obsoleta e difícil de manter, o que pode constituir um risco.  Mas a matéria prima que ela transforma, transporta e entrega ao domicílio é a energia. E se um dia, na parte inferior do processo, houver uma rutura no fornecimento dessa matéria prima, e as lâmpadas das nossas casas se apagarem, se o ascensor não subir e se o frigorífico deixar de funcionar, a culpa não é da eletricidade.

E se esse dia alguma vez chegar, a economia sofrerá um tsunami.



segunda-feira, 3 de junho de 2013

Um Prémio Autista


O Centro de Estudos Ibéricos da Guarda concede todos os anos um prémio, a que chamou o "Prémio Eduardo Lourenço", destinado a “galardoar personalidades ou instituições com intervenção  relevante no âmbito da cultura, cidadania e cooperação ibéricas “ (sic). Este ano empenhei-me pessoalmente (eu, e não só!) na apresentação da candidatura do Dr. Álvaro Carvalho, médico humanista, homem da cultura viva,  escritor e exemplar cidadão, por entender que se ajustava perfeitamente ao perfil visado no regulamento do referido prémio. Mas sendo o júri predominantemente constituído por gente de borla e capelo e sendo o meu candidato um candidato futrica (é este o termo que os doutores usam em Coimbra para designar a população civil), eu sabia, à partida, que ele não teria grandes hipóteses de ser escolhido.

Este ano, com alguma surpresa, o júri escolheu premiar o Sr. Jerónimo Pizarro, um professor universitário colombiano, apresentado como um estudioso de Fernando Pessoa. Esta atribuição vem na sequência da realização da feira do livro de Bogotá, fortemente publicitada na imprensa portuguesa, e visitada pelo nosso Presidente da República na sua recente deslocação à Colômbia. Não conheço a obra do premiado, nem questiono o seu valor, mas ficam no ar algumas interrogações, não sobre o seu mérito pessoal e literário mas sobre as motivações (pensando no regulamento do prémio)  que teriam levado os jurados a escolhê-lo.

Dizem-me que, este ano, estiveram em apreciação quase duas dezenas de candidaturas, facto angustiante para um júri, que, ainda por cima, teve de decidir depressa. Ao atribuir o prémio ao ilustre desconhecido,  Sr. Jerónimo Pizarro, o ilustrado júri do Centro de Estudos Ibéricos da Guarda faz-me lembrar os guardas pretorianos do imperador Calígula, que depois de o assassinarem, durante os jogos no circo Romano, hesitando na escolha do seu sucessor, e encontrando, por acaso, Claudius, um velho gago e sem ambição, da gens de Augusto, logo concluíram que  aquele encontro vinha mesmo a calhar e não tinham de  procurar mais. E de imediato, ali mesmo, o fizeram imperador.

Na minha opinião, a escolha do premiado teve sobretudo a ver com Fernando Pessoa. Pessoa é o poeta inquestionável, ainda por cima, querido de Lourenço e estudado por ele. Em Portugal, Pessoa é a personalidade do consenso, quase uma conveniência cultural. E a sua projeção além fronteiras enche-nos de orgulho, e aconchega-nos o ego. No nosso meio cultural, é de bom tom citar Pessoa, recitar Pessoa, estudar Pessoa, invocar Pessoa. E, contudo, convém lembrar que o poeta dos heterónimos simboliza a resignação dos portugueses, é o expoente maior da nossa depressão coletiva, uma espécie de espelho de um país, falhado e desassossegado.

Eu concluo, pois, que quem foi premiado pelo júri do CEI não foi Pizarro, foi Pessoa. E, neste pressuposto, não deixa de ser curioso constatar que no ano passado, Lourenço ganhou o Prémio Pessoa, e este ano, Pessoa ganhou o Prémio Lourenço. Atribuição que, tanto num como no outro caso, é honrosa para os premiados, mas que nada acrescentou ao seu  prestígio e grandeza, desde há muito afirmados e confirmados. Mas, como convinha, não houve sobressaltos, ficou tudo em casa, foi uma espécie de autismo cultural. Tudo, culturalmente, correto...

Ainda a este propósito, é oportuno recordar uma história exemplar: o concurso literário que a Real Academia das Ciências levou a efeito no longínquo ano de 1887, ficou famoso não pela obra premiada,  O Duque de Viseu de Henrique Lopes de Mendonça, mas pela que foi preterida, A Relíquia de Eça de Queirós. Foi Pinheiro Chagas que relatou o parecer  a justificar a decisão do júri, e este facto deu a Eça o ensejo de responder, escrevendo, com a sua fina ironia,  algumas das mais belas páginas da literatura portuguesa.

Henrique Lopes de Mendonça foi um distinto oficial da Armada e um notável historiador, poeta, romancista e dramaturgo, e foi o autor dos versos d'A Portuguesa. E não mereceu a desdita de ter sido galardoado, naquelas circunstâncias, com o prémio D. Luís do concurso da douta Academia.