segunda-feira, 29 de julho de 2013

Heterotopias

Eu ainda me lembro do tempo em que a vida das pessoas decorria toda ela dentro de um círculo com meia dúzia de quilómetros de raio, e onde  tudo se situava: a terra em que se trabalhava, o comércio onde se compravam os géneros, a taberna onde se bebia um copo de vinho. Era nesse espaço que se encontrava o homem ou a mulher para casar, ali  nasciam os filhos, e ali se aprendia a ler e a escrever... As raras aventuras que levavam as pessoas para fora desse círculo eram a a tropa e a emigração, esta inicialmente sem retorno. Este era um espaço, balizado pela igreja e pelo cemitério, onde havia lugar para o sagrado e para o profano. Os amigos (e os inimigos!) habitavam todos esse espaço,  as alegrias explodiam nele, e as lágrimas nele se vertiam.

Hoje nós vivemos em muitos espaços: o da nossa família, o da nossa rua, o do nosso clube, o do nosso trabalho, o da nossa associação, do nosso partido, o também o espaço das relações que perduram pela vida fora (os amigos de infância, da tropa, da faculdade, do Erasmus...). São espaços que se interpenetram e que desdobram o nosso eu,  criando vários "eus" que pouco ou nada têm a ver uns com os outros. E, sobretudo os mais jovens, estão a viver agora no seu espaço virtual do facebook, espaço ainda mal percebido mas vivo e atuante e até perturbador. Porque no espaço do facebook já não é o verdadeiro eu mas um outro eu, um alter ego, que  ali se representa. Um eu que comunica sem se expor, que se afirma sem emoções...que cria amizades sem presença, que acabam por deixar um vazio e ser fonte de neuroses.

Com tantos espaços, cada um com seu significado, vivemos numa heterotopia,  como se pertencêssemos simultâneamente a varias tribos, ou a diferentes clãs. Neles se criam laços afetivos, e neles se estabelecem relações de amizade. A cada um desses espaços corresponde uma ambiência afetiva. E são os laços afetivos que preenchem esses espaços que os tornam agradáveis e até habitáveis.  Esses espaços acolhem as nossas raízes, e as amizades neles criadas são a seiva  que nos alimenta o espírito.  Sem amigos a preenchê-los os nossos espaços não têm sentido, e acabam por desparecer. E a vida torna-se mais vazia e depressiva. Mas conciliar esta multiplicidade de pertenças pode trazer dificuldades, pode criar ambivalências e conflitos e pode ser fonte de angústia.

A família, é o espaço mais estruturante por excelência, por ser mais duradouro e permanente. Os laços de sangue, a história e a educação comuns, são motivos agrgadores.  O espaço familiar não é descartável, e necessita de uma atenção especial. Os familiares não se escolhem, os amigos sim. A amizade no espaço familiar pode ser muito forte e enriquecedora. E a falta dessa amizade é quase sempre perturbadora, e geradora de instabilidade. No espaço heterotópico, a família tende a diluir-se, e isso pode também ser uma fonte de insegurança.

Um homem com muitos espaços pode ser um homem sem espaço nenhum. Para encontrar o rumo, na complexidade das dimensões da heterotopia, o homem do futuro vai precisar de  um novo sentido de orientação e de uma nova bússola para não se perder no caminho!

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