segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

O Quarto Sector

A economia mundial está a entrar numa nova fase, a hiperglobalização, que se carateriza pela uniformização dos gostos e dos consumos (tanto de bens físicos como culturais), pela digitalização da informação gráfica e escrita, pela interdependência das economias, pela interatividade da comunicação possibilitada pela internet. A capacidade de armazenar e processar grandes volumes de informação (big data), de manipular os genes dos seres vivos e interferir com a própria identidade das espécies, são outras caraterísticas desta nova fase. São transformações que estão a originar novos negócios, a estabelecer novas atividades, a criar novas profissões. Surgem  poderosas empresas de um novo tipo,  a inteligência passou a ser um produto comercial. Aos poucos, na nova economia, começa a definir-se e a ganhar peso um novo sector de atividade que poderemos designar de quaternário ou de quarto sector

 Tradicionalmente, as atividades económicas repartem-se por três sectores: primário que abrange a agricultura, silvicultura, pecuária, pescas e exploração mineira; secundário que inclui as indústrias transformadoras, a construção  a produção de energia; terciário que integra o comércio e os serviços. Em Portugal, o sector primário tem vindo a perder importância. Segundo dados do INE (Estatísticas do Emprego), em 1974, 35% da população ativa trabalhava no sector primário e em 2012 essa percentagem baixou para 10%. A importância do sector secundário, por sua vez, passou de 34% para 26%. Houve uma grande transferência de emprego para o sector terciário que ocupava 31%  da população ativa em 1974, e que emprega hoje 64% dessa mesma população.

No início do século XX, o sector terciário era incipiente. O aumento gradual da sua importância foi um reflexo das transformações ocorridas durante a era do carbono. Sempre que o homem conseguiu melhorar a forma de produzir mais alimentos, isso permitiu libertar pessoas para outras atividades. O mesmo  aconteceu na revolução agrícola que conduziu à sedentarização. Voltou a acontecer com a introdução de novas técnicas de regadio, com a utilização da charrua de ferro, com o recurso ao trabalho dos animais. Mas foi com a revolução industrial, resultante da máquina a vapor e do carvão, que se iniciou uma profunda alteração na organização social. A mecanização da agricultura e o uso de fertilizantes e de pesticidas deu origem à revolução verde,  que libertou pessoas das tarefas agrícolas, muitas  das quais foram absorvidas pelas fábricas.

Ao mesmo tempo, a eletricidade libertava a mulher das tarefas domésticas. Durante muito tempo, a máquina e a energia substituiram os músculos dos trabalhadores, e, mais recentemente, a robotização já lhes substitui os neurónios. A linha de montagem que era assistida por operários passou a ser automática. Nas fábricas modernas, o trabalho humano, reduzido à sua expressão mais simples, limita-se a vigiar a correta normalidade dos processos. O comércio e os serviços absorveram uma boa parte da mão de obra libertada pela automatização e pelo aumento da eficácia da indústria.

Mas o automatismo está a chegar aos serviços. Os transportes dispensam revisores e cobradores e até condutores. Os serviços financeiros, o comércio, o turismo, a hotelaria, estão também a libertar mão de obra.  A era digital está a eliminar muitas funções das indústrias gráficas e das comunicações. Isto está a criar um enorme paradoxo: a população mundial aumenta, mas o emprego diminui, pois  as necessidades de pessoas para trabalhar são agora menores. Será que o quarto sector vai absorver os excedentes de mão de obra que são o resultado destas transformações?

Na minha opinião, a hiperglobalização enfrentará graves problemas. Não criará empregos suficientes para compensar os que destrói; está na perigosa e arriscada dependência da complexidade; varre para debaixo do tapete os graves problemas da escassez de recursos e da poluição. Não promove igualdades. Não resolve os problemas sociais.  Na verdade, a hiperglobalização irá acentuar as dissonâncias entre  a natureza e a economia. Os recursos continuarão a consumir-se de forma irracional, o planeta continuará a aquecer, as abelhas continuarão a morrer, a biodiversidade vai reduzir-se. No plano social, as grandes contradições não serão resolvidas: alguns ricos ficarão mais ricos, e muitos pobres ficarão ainda mais pobres. O desemprego crescente alimentará uma onda imparável de indignação. E os políticos, obcecados com o crescimento, só acordarão quando a casa comum já estiver a arder.

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

O Futuro das Cidades


Nas antevisões que fazemos do futuro, temos tendência a valorizar mais o lado bom das coisas e a deixar de lado os aspetos negativos. Foi assim que os nossos avós imaginavam o século XXI: com paz, harmonia social, curas milagrosas e bem estar generalizado. Por isso quando pensamos no futuro das cidades somos levados a imaginar as cidades do futuro. E imaginamos espaços mais verdes e limpos, mais funcionais, mais seguros, mais feitos à medida do homem. Penso que foi esse o sonho de Oscar Niemeyer ao projetar Brasília. Mas as cidades que as novas gerações irão habitar já existem hoje com os seus problemas e com  as suas distorções. Cidades que não foram feitas à medida do homem mas sim à medida do automóvel. Que são o produto duma civilização que se globalizou e que cresceu desmesuradamente.

Em 1950, mais de 70% da população mundial vivia em habitats rurais; em 2050 haverá uma inversão, e essa percentagem reduzir-se-á a 30%. Por outras palavras, a população urbana do planeta era, em 1950,  de menos de mil milhões de pessoas; em 2050 esse valor será superior a seis mil milhões. A urbanização acelerada foi o resultado de um processo que tem a ver com as grandes transformações ocorridas no pós guerra. Ela é uma consequência direta da revolução industrial, mas está relacionada com  a disponibilidade energética proporcionada pela Era do Carbono. Na verdade, o automóvel que criou os subúrbios e o elevador que criou o arranha céus  são os dois principais fatores responsáveis pela urbanização. E atrás deles está, num caso, o petróleo e, no outro, a eletricidade. Ou seja, energia abundante e barata.

 Países emergentes como a China viram, na última década, a sua população urbana crescer desmesuradamente. E o fenómeno das migrações do campo para as cidades continua.  Uma das causas que lhe deram origem foi a  revolução verde que permitiu elevadas produtividades agrícolas como resultado da mecanização e do uso de fertilizantes, e criou  mão de obra excedentária no  espaço rural. E a revolução verde foi, ela própria, resultado da evolução tecnológica, mas, sobretudo, da energia barata.

O tecido urbano das modernas cidades é, hoje, muito diferenciado: mantém-se o velho centro histórico rodeado de uma zona envolvente de serviços e, mais afastados, os subúrbios ou dormitórios. Algumas cidades atingiram dimensão crítica, e podem enfrentar problemas de gestão das redes através das quais fluem os  recursos de que necessitam (alimentos, água, energia)  e os desperdícios que produzem (lixo, esgotos). Por outro lado, o comércio das modernas cidades desenvolveu-se em grandes superfícies centrado no automóvel e que contribuíram para ajudar a desertificar os velhos centros tradicionais e históricos dessas cidades.

Mas o ciclo de crescimento urbano parece estar a terminar. São várias as razões para isso acontecer: a estabilização  da capitação energética, o fim do crescimento económico, o fim da revolução verde, o acréscimo populacional, o desemprego, enfim a crise económica. E as grandes cidades, numa economia em recessão, poderão enfrentar enormes problemas. Cenários de carências, de degradação e de insegurança podem ser a consequência.

Mais importante do idealizar a cidade do futuro, é pensar - e urgentemente - no futuro das nossas cidades. Esse futuro só em parte está nas nossas mãos. As pressões que afetam a economia que são responsáveis pela presente crise económica, vão deixar-nos pouco tempo para divagações arquitetónicas sobre o novo urbanismo. Penso que é altura de nos centrarmos no plano dos princípios: queremos cidades mais à medida dos homens, com mais sustentabilidade, com mais espírito comunitário, menos dependentes do automóvel e com um florescente comércio de proximidade. Afinal, são estes os princípios da Transição.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Alturas do Barroso

Não me temo de Castela, 
Donde inda guerra não soa,
Mas temo-me de Lisboa 
Que, ao cheiro desta canela, 
O Reino nos despovoa
 (Sá de Miranda in "Carta a António Pereira"- Senhor de Basto)

Num dos últimos fins de semana, por motivo de uma ação de formação do programa Nepso da Fundação Vox Populi, fiz, com a minha mulher, uma incursão por terras nortenhas de Basto e do Barroso. Foi o prazer de descobrir um Portugal que não conhecia, montanhoso, agreste, rude, austero e trabalhador. É nessa região que ainda se encontram dos genes mais autênticos da raça portuguesa. Mas que, à semelhança do velho Portugal rural, está em vias de desaparecer.

No domingo, em Arco de Baúlhe (Cabeceiras de Basto), na capela da Faia, assistimos à Missa. Eu sou um agnóstico, tenho em relação a Deus uma posição descomprometida e expectante, como quem espera uma revelação que lhe demonstre a sua existência. Mas não sou ateu, nem antirreligioso. Confesso que me sinto bem dentro de uma igreja. A porta está aberta, não me perguntam nada à entrada, o espaço é amplo e pacífico, o ambiente é de respeito. Gosto de ouvir as leituras da Bíblia, e procuro descodificá-las e perceber o seu significado. Muitas vezes, ao ouvi-las, interrogo-me sobre os meandros do pensamento judeu que lhes está subjacente, e que, cruzado com o pensamento grego, formatou o cristianismo e a Civilização Ocidental. Na missa, e no silêncio de algumas igrejas, aproveito, muitas vezes, para me encontrar comigo mesmo!

Na capela da Faia, o padre era assertivo. Na homilia, desceu à coxia para ficar mais perto dos fiéis e, assim, ser mais convincente na prédica, feita com vozeirão grosso e gestos rasgados. Falou da fé, mas o tema recorrente destas práticas é o bem e o mal, a morte e a promessa de vida para lá dela. Na Igreja, eram quase só velhos, havia alguns jovens, e quase não se viam crianças. Estava ao meu lado uma mulher de meia idade, com um xaile de cor verde azeitona às flores e com  arrecadas de ouro penduradas nas orelhas. O rosto era firme e anguloso. Lembrou-me a D. Aldina, uma transmontana que conheci na minha adolescência, na Guarda, quando vinha com o marido mercadejar na cidade, e pernoitava na pensão que o meu pai explorava. No fim da missa, no abraço da paz, cumprimentei aquela mulher que estava ao meu lado. Não levantou a cabeça, estendeu-me a mão  e eu senti, na aspereza daquele aperto, a dureza do que seria o seu trabalho na cozinha, na casa e na faina do campo.

Nessa tarde, como que a propósito, a Alice, a amiga que nos recebeu em Carvalho (aldeia do concelho de Boticas), recitou, como só ela o sabe fazer, o poema Calçada de Carriche do poeta António Gedeão: Luísa sobe, sobe que sobe, sobe a calçada...  E contou que certa vez o tinha declamado, publicamente, em Boticas. E que uma mulher do campo, no final, se tinha aproximado dela e sussurrado: É mesmo assim, menina! (é mesmo axim, na entoação dela ). E eu lembrei-me das mãos que me tinham cumprimentado na Capela da Faia.

Depois de conhecermos Boticas, o Moisés e a Alice levaram-nos a visitar as aldeias de Alturas do Barroso e  de Vilarinho Seco. Ainda pude ver uma aldeã vestindo a tradicional capucha de burel e, ao longo da estrada, uma manada de vacas barrosãs, pachorrentas e de longos chifres. Em Vilarinho Seco, procurámos o Pedro e a Ana que exploram um restaurante, numa casa bem transmontana: sólida, fria e farta. Recebeu-nos a Ana, corpo marcado pelos anos, denunciando esforços a manusear panelões de sopa e de cozido, confecionados em lumes grossos e servidos em largas mesas de carvalho e de castanho. Mas esta senhora, mãe de três filhos que os estudos no Porto já roubaram irreversivelmente ao Barroso rural, é uma pessoa muito alegre e jovial. No álbum de fotografias da Alice, constatei que Ana já tinha sido  menina e tinha casado de branco.

Nessa noite, fomos dormir ao centenário Palace de Vidago, inaugurado em 1910.  Foi reinaugurado por José Sócrates, em 2010, depois de renovado com um projeto de Siza Vieira e um investimento de sessenta milhões de Euros, oriundos de fundos da CE.  Este Hotel de 5 estrelas, com 70 quartos, campo de golfe e balneário requintado (um spa), orientado para um turismo termal, golfe e congressos,  é, na sua aparência e no seu significado, o oposto do Barroso. Emprega 120 pessoas, mas a sua viabilidade é duvidosa...Foi um projeto PIN, construído na euforia do betão, no tempo de Manuel Pinho. Em 2012, Pires de Lima, o então presidente da Unicer, a proprietária do hotel, falava, num tom lamentoso,  de uma taxa de ocupação de 40 a 45% e de prejuízos anuais de 4,5 milhões de Euros.  Entretanto, um outro projeto megalómano de 120 quartos para Pedras Salgadas já foi abandonado.

O Basto e o Barroso estão despovoados, e estes projetos da Globalização não respondem à urgente necessidade de os repovoar. Mas os tempos estão a mudar muito depressa, e tudo pode acontecer!