segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

25 de Abril, 40 Anos Depois

Nos anos que se seguiram ao final da Segunda Grande Guerra, o esforço de reconstrução dos estragos provocados pelo conflito, o recurso a novas tecnologias desenvolvidas pela indústria militar e a disponibilidade de uma energia abundante e barata (o petróleo), provocaram um elevado crescimento económico acompanhado de um grande progresso social. No mundo ocidental, reeditou-se a febre consumista dos loucos anos vinte americanos. Entre as mudanças que contribuíram para a prosperidade e para o pleno emprego, contam-se a urbanização, a emigração, a ascensão social da mulher - libertada de tarefas do lar pela vulgarização dos eletrodomésticos -, a generalização do uso do automóvel, o acesso dos jovens de camadas sociais mais desfavorecidas à educação. Os acordos de comércio livre impulsionaram as trocas comerciais,  afirmou-se a globalização, as multinacionais ganharam um grande poder, acentuou-se a  interdependência entre Estados e economias. Em muitos países começou a ganhar forma o Estado Social.

Fora do mundo industrializado, estavam em curso mudanças históricas, impensáveis trinta anos antes. Uma grande parte do então chamado terceiro mundo começou a libertar-se das potências administrantes. A  Indonésia proclamou a independência da Holanda  em agosto de 1945, dois dias após a rendição do Japão, a Índia tornou-se independente em 1947, a Indochina e a Argélia ascendem à independência depois de conflitos sangrentos com a França.  Chegou a vez da África subsariana, onde a partir dos anos 60, as colónias francesas, inglesas e o Congo Belga proclamam a independência. O antigo mundo colonial estava a dar origem a um  mundo novo ávido de aprender, de crescer e de se industrializar.

Apesar da famosa afirmação de Churchill, feita após a vitória dos aliados,  que das ditaduras europeias não ficaria pedra sobre pedra, Portugal conseguiu manter, após 1945, um regime ditatorial obsoleto, sem liberdade, sem partidos políticos, com censura e com forte repressão.  Acompanhado da Espanha, os dois países constituíam uma espécie de mundo à parte na Europa Ocidental. A economia portuguesa apoiava-se nas colónias que forneciam matérias primas e eram o destino de uma boa parte das suas exportações. As remessas dos emigrantes (que abandonavam a salto o país a caminho da Europa), o turismo, o protecionismo industrial e a entrada de multinacionais trouxeram algum progresso.

Quando, em 1961, os ventos da independência chegam às colónias portuguesas de África, o desafio que se colocou ao regime, pondo à prova a sua força e coesão foi saber qual a decisão a tomar. A opção  pela guerra fez abrirem-se, num ápice, três frentes de combate em Angola, Moçambique e Guiné. O governo português ao tomar esta decisão acreditou poder manter um império colonial à portuguesa, pluricontinental e plurirracial (com o Brasil apontado como exemplo) . Os governantes terão admitido terem a seu favor o facto de poderem apresentar-se ao Ocidente como um bastião para conter o avanço comunista e, assim, obter o seu apoio. Mas a América, saída do pós guerra como o líder do mundo ocidental, sendo anti-comunista, era também anti-colonialista. A possibilidade de emergir na África Austral um bloco com relevância económica e enormes recursos, liderado pela África do Sul, terá pesado também na decisão de fazer a guerra.

Nessa altura, os interesses económicos da elite dominante centrados em África, sobrepuseram-se a uma visão desapaixonada da história. Saber se naquelas condições era possível ou viável outra opção é a questão que ficará sem resposta.  Seguiu-se uma guerra longa e desgastante. Muitos se  interrogam ainda hoje, como foi possível a um pequeno país - pobre e isolado internacionalmente - mantê-la durante 13 anos! No seu início, certamente,poucos previam essa tenacidade e essa capacidade. Terá sido a força ou a teimosia (mas não há teimosia sem força!) do regime ou a fraqueza da oposição?

Em 1974, Portugal estava já exaurido de recursos humanos e económicos para manter as três frentes da guerra colonial. A crise mundial de 1973, resultante  do choque petrolífero provocado pelo embargo dos países da OPEP, só veio agravar a situação. Estava em ascensão, tanto no plano civil como militar, a geração que tinha nascido no pós guerra, que tinha vivido o maio de 68; ao mesmo tempo, estava a desaparecer a geração que tinha implantado e consolidado o regime e testemunhado os anos da guerra civil  espanhola. No regime, desaparecida a figura tutelar, abriam-se fendas, e surgia a ala liberal. O isolamento internacional era sufocante. Portugal já não tinha aliados.

É certo que a guerra colonial não estava perdida no terreno, mas era cada vez mais evidente que não se podia vencer. O tempo e os ventos da história estavam contra nós. A causa estava perdida.  O desfecho não podia ser outro: o sistema que atara o nó nunca mais o poderia desfazer. Alguém tinha de o fazer por ele. O dia da derrocada não estava marcado no calendário, mas o 25 de Abril estava inscrito na História. Nesse dia o regime velho de 48 anos caiu de podre, desfez-se, entregou-se sem luta, sem honra e sem dignidade. Portugal chegava à democracia com trinta anos de atraso.

Eu tinha 28 anos no 25 de Abril. Era a idade do sonho, da esperança e da generosidade. Inebriei-me com a explosão da Liberdade e assisti ao tempo do 25 de Abril na primeira fila.  Depois da euforia, quando a poeira começou a assentar, decidi subir a escada da vida, e Abril ficou lá atrás. Hoje, passados 40 anos sobre aquela manhã incrível, em que tudo parecia irreal, torna-se obrigatório refletir sobre o que foi aquele momento, perceber qual o seu significado e indagar sobre as causas que lhe deram origem.

Para a minha geração, o 25 de Abril representou também uma libertação interior.  Uma paixão que não se repetirá. E que me faz evocar o filme Casablanca, quando Rick (Humphrey Boggart), ciente de que o antigo amor vivido na Paris ocupada, já não poderia ser revivido em Casablanca, diz a  Ilsa (Ingrid Bergmann):  We'll always have Paris. Da mesma forma, eu digo: I'll always have AbrilPerdi o sonho e a esperança, esforço-me por manter a generosidade.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Viagem à Capital do Reich

Não conhecia Berlim. A minha ideia da cidade era um leve esboço, resultado de leituras da adolescência, enquadrado pelo ambiente que envolvia o filme Cabaret com Liza Minelli. Nesse quadro predominava a Berlim do início dos anos 30, povoada de femmes fatales, estilo Marlene Dietrich dos filmes de Sternberg. Depois, havia a outra faceta: a Berlim da guerra, dos desfiles nazis, das perseguições aos judeus, da cidade bombardeada e da famosa fotografia dos soldados soviéticos a hastear a bandeira vermelha no Reichstag em ruínas. Mais recentemente, a Berlim dividida pelo muro, do Ich bin ein Berliner de Kennedy. E, finalmente, a cidade reunificada. Renascida das cinzas, como a Fénix, Berlim volta a ser a capital do Reich, e aspira ser a capital duma Europa à procura de si própria.

Foi esta nova Berlim que eu fui conhecer no fim de semana passado. Uma cidade ampla, acolhedora e em movimento. Uma cidade com gente jovem. Uma cidade de cultura. Chega-se a Berlim pelo velho aeroporto de Schönefeld, que servia a antiga parte oriental, e que vai, muito em breve, dar lugar a um novo aeroporto, mais moderno. O comboio leva-nos ao centro da cidade. Deu para perceber a eficiência de um sistema de transportes baseado no metro e no comboio urbano. Ficamos num hotel familiar perto do centro, na antiga parte oriental, situado numa rua comercial com restaurantes sírios, vietnamitas, japoneses, italianos, e onde não falta uma livraria portuguesa, uma espécie de alfarrabista.

A nova Berlim recuperou o seu centro monumental onde sobressaem o Reichstag, a porta de Brandenburgo, e o memorial ao Holocausto construído exatamente no lugar  do bunker onde, em Abril de 1945, Hitler se suicidou juntamente com Eva Braun. O Tieregarten é um parque citadino, orgulho dos berlinenses que o comparam ao Central Parque de Nova Iorque. Não pudemos visitar o imponente Reichstag, pois era necessário marcar a visita com semanas de antecedência. Fizemos o circuito turístico que deu para ficar com uma ideia da cidade,  e ver  o que resta do muro, no celebrado Check Point Charlie.

Berlim é uma cidade com muitos museus. Mas como não se pode visitar tudo, optámos pelo museu Pergamon . No final do século XIX, após a conferência de Berlim, uma grande parte do mundo, fora da Europa, estava debaixo da alçada do império britânico. Foi a época das grandes explorações. Os alemães, sem a tradição marítima e sem os imensos territórios de África, da Ásia e da Austrália dos ingleses, não quiseram ficar atrás deles. Voltaram-se para os territórios do Império Otomano: Turquia, Síria, Líbano, Egipto. Aí pesquisaram, descobriram, escavaram, e, sempre que os deixaram, levaram tudo o que encontraram para Berlim. No Pergamon podemos ver, em três reconstituições fabulosas, uma parte desse espólio: a porta de Ishtar na Babilónia, com os seus dragões, o portal da entrada do mercado de Mileto, e o altar de Pérgamo. O extraordinário trabalho de recuperação realizado, e a possibilidade de o visitar em condições ótimas, retira qualquer significado à discussão sobre se havia ou não o direito de desviar estes achados dos seus locais de origem. Depois desta visita, pela parte que me toca, absolvo os alemães de qualquer pecado sobre este assunto...O esplendor das civilizações da Mesopotâmia poderia ter-se perdido para sempre, e nunca chegar a ser conhecido em toda a sua amplitude, sem este fabuloso trabalho de recuperação, catalogação, restauro e enquadramento museológico.

A noite de sexta feira foi dedicada a assistir  a um concerto da famosa Filarmónica de Berlim.  Dirigia a orquestra o maestro americano Herbert Blomstedt, já nonagenário. Na segunda parte, a orquestra  interpretou a famosa Sinfonia Fantástica de Hector Berlioz. Um drama instrumental como aparecia referido no programa.  É um privilégio poder ouvir uma das melhores orquestras do mundo, para muitos a melhor, numa sala que, dizem os entendidos, reúne condições acústicas excecionais. 

No sábado foi tempo de visitar o mercado de antiguidades, na rua, junto ao Jardim Zoológico, num canto do Tieregarten. Depois de um almoço bem alemão  (wurst, a famosa salsicha, com mostarda e choucroute),  foi o deslumbramento do consumismo na visita aos grandes armazéns  KaDeWe, situados no centro comercial da antiga Berlim Ocidental. Ficamos esmagados pela diversidade e pela abundância cornucopiana dos produtos expostos. E pela avidez dos consumidores.

A Alemanha, sem história, não é verdadeiramente uma  nação como a Inglaterra ou a França. E só uma não-nação com o peso económico da Alemanha, libertada de ambições imperialistas e de preconceitos rácicos, pode liderar a construção de uma Europa que precisa de se libertar do espartilho das nações (onde se inclui a  própria Alemanha) que há um século atrás a mergulharam em duas guerras sangrentas. Berlim aspira, com razão, a ser a capital dessa Europa. Não é seguro que o consiga, mas sem Alemanha não haverá Europa.


segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Opinião e Educação

Na opinião de muitos dos professores participantes  no Nepso - a nossa Escola pesquisa a sua opinião - da Fundação Vox Populi, o programa tem-se revelado ser uma ferramenta útil e importante para a aprendizagem.  Os alunos pesquisam, trabalham em equipa, vencem obstáculos, criam conhecimento. E, em muitos casos, entusiasmam-se e mostram-se empolgados com os resultados. No ensino tradicional, tudo se orienta para o saber que. Com os projetos do Nepso procura-se que os alunos fiquem a saber como.  No início, ao escolherem o tema que vão pesquisar, os participantes acham que sabem muito sobre ele. Mas rapidamente descobrem quão pouco sabem. Ao longo do projeto, assiste-se a uma evolução que parte da opinião sobre um assunto para chegar ao conhecimento sobre esse assunto.

Os gregos utilizavam a palavra doxa (que encontramos em ortodoxo, por exemplo) para significar  as crenças, os juízos, as tradições do povo, que constituem a sabedoria popular. O conceito  corresponde ao de opinião pública no sentido que hoje lhe damos; por oposição, eles designavam por epistemê o saber científico, fundamentado e reservado a uma elite estudiosa, esforçada e desejosa de aprender.  Platão, que se ocupou do assunto nos seus diálogos, considerava que a doxa era manipulada pela retórica dos sofistas. E que isso punha em causa a própria democracia. Porque, em democracia, o poder detido pelos governantes, emana do povo que os elege. Ora a força do povo está no voto, que traduz e representa a opinião pública. E se a opinião publica não é o verdadeiro conhecimento, e pode ser manipulada, então a democracia que dela deriva assenta em sofismas e não na verdade.  Penso que será este o argumento dos que defendem que a democracia tem de evoluir para a meritocracia.

No mundo atual, dominado pelos regimes democráticos, a questão da opinião pública e da democracia não pode ser ignorada. Na Alemanha dos anos 30, a opinião pública era favorável a Hitler, condenava os judeus, aceitava naturalmente a supremacia da raça ariana.  Também no Portugal do Estado Novo a doxa era salazarista. Serão casos extremos, concordo, onde não existia liberdade e se manipulava a opinião das pessoas pela propaganda. Mas o essencial mantém-se: o objetivo do discurso político não é o epistemê, mas sim a doxa. Entre um discurso demagógico ou sofista que traz votos e um discurso realista e verdadeiro que afasta votos, o político opta pelo primeiro.  E sabendo que é a opinião pública que está na base do poder, recorre-se a técnicas para formar ou deformar essa opinião. A importância e o papel dos meios de comunicação  e das sondagens é mais do que conhecida. O efeito de entrar no bandwagon (à letra o carro da banda, em português traduzido no ditado maria vai com as outras) diz-nos que uma opinião reconhecida como dominante tende a atrair cada vez mais pessoas. E em tudo, na política e até na economia, procura criar-se a moda favorável, seja a que preço for.

A Escola deve formar homens e mulheres preparados para tomarem as suas decisões, e fazerem as suas opções com base no epistemê e não na doxa. Para a formação das crenças, para a afirmação dos valores, para a construção da personalidade contribuem vários fatores: familiares, sociais e, sobretudo, educacionais. No tempo que vivemos, o papel da escola dilui-se. A televisão e a internet absorvem uma boa parte do nosso tempo, e têm uma enorme influência na formação da personalidade e da opinião acéfala. Mas a Escola pode e deve contrariar a retórica sofista como a definia Platão.

O Nepso é uma ferramenta orientada para o epistemê, que ajuda os jovens a encontrar o caminho para construir opinião crítica e fundamentada.