segunda-feira, 17 de março de 2014

O Último Cerco de Almeida


No Verão de 1810, as tropas francesas de André Massena decididas a conquistar e ocupar Lisboa, escolhem fazê-lo pela rota da Beira, que entra por Almeida e  segue por Pinhel, Trancoso e vale do Mondego até Coimbra, que ficava já na estrada que ia do Porto para a capital do Reino. Wellington, que chefiava as forças opositoras, opta por retardar o mais possível a progressão dos franceses, procura dificultar-lhes o aprovisionamento através da política de terra queimada, e estabelece um reduto defensivo a norte de Lisboa, as famosas Linhas de Torres. Com esta estratégia, esperava o general inglês que as tropas de Massena fossem surpreendidas pelas chuvas outonais, as quais deixariam as estradas em mau estado, enfraquecendo-as e dificultando-lhes a progressão para a capital.

No início do século XIX, A Inglaterra e a França lutavam pela supremacia na Europa. As estrondosas vitórias da Grande Armée de Napoleão frente aos austríacos, aos russos e aos prussianos, permitiam-lhe alimentar o sonho de vencer esta disputa.  A Inglaterra detinha a supremacia nos mares a qual saiu reforçada e incontestada depois da vitória de Nelson em Trafalgar, em 1805. Para os franceses, a península Ibérica, e sobretudo Portugal, tinha uma grande importância. Lisboa com o amplo fundeadouro do Tejo ocupava uma importante posição estratégica que controlava o acesso ao mediterrâneo e à rota da Índia, cruciais para os ingleses. O Brasil com as suas riquezas, onde desde 1808 se encontrava a família real, era outro prémio apetecível. Ora, fechar os portos portugueses aos ingleses era fundamental para os objetivos de Bonaparte.

Pela sua localização e inacessibilidade na extremidade da península Ibérica, Lisboa era uma cidade difícil de conquistar. E foi isto que justificou a secular independência de Portugal.  No início do século XIX, as vias de comunicação terrestres eram más e os rios dificilmente navegáveis. Para quem vem de França, a rota da Beira é o caminho mais direto para Lisboa. Como principais dificuldades, a travessia do Côa e da cordilheira (entre o Caramulo e o Bussaco) que separa o planalto da meseta das planícies do litoral. O primeiro obstáculo militar a vencer era Almeida, um baluarte de fronteira. Ali, entre 1640 e 1810, tinham sido levantadas imponentes fortificações, pensadas e projetadas para uma guerra de artilharia. O local não seria o ideal,  e a configuração do terreno, num plano levemente inclinado, apresentava inúmeras fragilidades. Mas sem alternativas, naqueles 170 anos, as muralhas com os seus baluartes e os seus revelins foram, aos poucos, tomando forma. A fortaleza tinha sido cercada e resistido em 1663, na Guerra da Restauração, e tinha capitulado perante os espanhóis no Verão de 1762, na guerra que se seguiu à recusa de Portugal em assinar o Pacto de Família. O conde de Lippe, contratado por Pombal para reorganizar o exército português, visitou a praça em 1764, e contribuiu para dar um impulso decisivo na finalização das fortificações.

Em agosto de 1810, guarnecida por 5000 homens, bem provida de pólvora e mantimentos, Almeida era um sério obstáculo que Massena tinha de superar. Wellington tinha fixado uma  missão: resistir o máximo de tempo, três semanas, um mês se fosse possível. Naquele embate, Almeida iria ter a oportunidade de mostrar que o esforço de construir tão dispendiosas fortificações, tinha valido a pena. Apesar de que  esta não era uma guerra portuguesa, não se defendia Portugal, nem se lutava na defesa de nenhuma ideologia nacional. O regente tinha fugido para o Brasil e não existia verdadeiramente um governo português. O que restava do nosso exército, uma parte estava na Legião Portuguesa combatendo sob a bandeira das águias do Corso , outra parte estava integrada no exercito inglês e sob o seu comando. Em Portugal, os ingleses ocuparam o vazio existente, e faziam aqui a sua guerra longe do seu território.

Mas naquele fatídico dia 26 de Agosto, escassos dias depois de ter começado o cerco, o destino não deixou que Almeida cumprisse o fim para que fora construída. Um acidente ocorrido no paiol provoca a explosão do castelo e a sua derrocada. Terão morrido cerca de 500 pessoas e ficaram danificadas a maior parte das casas da povoação.  A fortaleza que deveria resistir por semanas não aguenta mais de três dias, e capitula dilacerada e sem glória. Mais tarde, o governador português da praça, que, naquelas condições, pouco mais poderia ter feito a não ser a render-se, haveria de ser acusado de traição e sentenciado à morte pela justiça dos ingleses.

Massena nunca entrará a Lisboa. Em 1815, a França vê os seus sonhos de dominar a Europa desfeitos em Waterloo. Nos 100 anos seguintes, nenhuma potência faria frente à Inglaterra. A partir daí, Almeida como fortaleza deixa de fazer sentido. Quando, em 1914, a Alemanha unificada e forte volta a desafiar os ingleses, a guerra que se segue é já de outro tipo e as escaramuças decorrem noutra geografia. A Espanha também já não constitui uma ameaça à nossa independência. Almeida e as suas muralhas deixaram de ter qualquer sentido estratégico. No século XIX, as casas-matas ainda serviriam de prisão nas lutas liberais.  Em 1927, o último soldado abandona a praça militar.

A fortaleza impensável, erguida no meio de nada, teve 170 anos de vida e sacrificou-se no último cerco. A sua história, a do suor dos seus construtores e a do sofrimento da gente da sua região, ainda está por escrever. As muralhas resistem, praticamente intactas, como seriam há 200 anos. Mas ninguém sabe ao certo o que fazer com elas.

segunda-feira, 10 de março de 2014

Anos Sessenta

Para a gente da minha geração, parece que foi nos anos sessenta que tudo aconteceu: o rock and roll, os beatles, os rolling stones, o woodstock, os hippies, as calças à boca-de- sino, a minissaia, a vulgarização da pílula, o make love not war, o começar a percorrer o mundo de mochila às costas, a emancipação da mulher, a urbanização, o aparecimento dos subúrbios, o marketing, a ida à Lua, a contestação à guerra por imperativo de consciência, a emancipação dos negros na América e a libertação dos povos africanos. No cinema e na música os nomes dos anos sessenta, formam uma constelação de estrelas: Fellini, Visconti, Hitchcock, Ingmar Bergman, Kubrick, Chabrol, Brigitte Bardot, Sofia Loren, Claudia Cardinali, Jane Birkin, Marilyn Monroe, Elvis Presley, Bob Dylan, Joan Baez, Bob Marley. E tantos outros! E não faltam os mitos e os heróis : Che Guevara, Luther King, John Kennedy, Fidel de Castro, Mao Tse Tung, João XXIII, Zeca Afonso, Adriano Correia de Oliveira...

 No mundo ocidental, que durante muito tempo foi sinónimo de mundo civilizado e industrializado, esses anos são tempo de mudanças, durante os quais a sociedade se transformou de forma irreversível. De repente, a velha ordem hierárquica e tradicional, baseada nos valores da família, da religião e do amor pátrio, começou a ruir. Foi uma revolução social, direi mesmo uma revolução civilizacional. Aparentemente o driver destas transformações foi uma movimentação dos mais jovens, que interiorizaram a sua predestinação para realizar as mudanças e não hesitaram em tomar nas suas mãos essa missão. O maio de 68 em França e a crise académica de 69 em Portugal são momentos dessa afirmação.

No início da década de sessenta, a geração nascida durante a guerra e nos anos seguintes começava a chegar às universidades. Mas já não eram apenas os filhos das elites que ascendiam ao ensino superior. Na velha sociedade hierárquica e estruturada, a Universidade era o filtro de malha fina que limitava a ascensão social. Isso era muito evidente no nosso País onde, ao contrário do que se passava nos EUA, a via do sucesso empresarial ou comercial foi sempre mal vista como forma de reconhecimento social. Entre nós, desde que acabou a fidalguia, a pertença ao mundo dos doutores passou a ser a principal marca do elitismo.

Em Portugal, os anos sessenta são ainda tempos de ditadura, de censura, mas agora também das grandes migrações (para a Europa, para as cidades do litoral) , das crises académicas, da guerra colonial, das canções de protesto. Apesar da exaltação nacional que foi o campeonato do mundo de futebol de 1966, e das glórias europeias do Benfica, a repressão gerava a contracultura: éramos anti-regime, anti-fado, anti-futebol, anti-nacional-cançonetismo e anti-religião. Ao som dos long plays, da rádio, da música inglesa, do em órbita viviam-se os últimos tempos românticos. Tempos em que o amor começava com la main dans la main, les yeux dans les yeux.

Mas, nessa década, quase sem nos darmos conta, teve também lugar uma revolução energética que transformou a nossa forma de viver. Em 1960, a economia mundial absorvia 20 milhões de barris de petróleo por dia que corria abundante e barato. O crescimento precisava de mais e mais crude. E ele jorrava fácil no Texas, no deserto da Arábia, no Irão e no Iraque. No final da década, o consumo mundial de petróleo era já de 50 milhões de barris por dia. Foi essa energia que levou o conforto aos lares e fez esquecer o tempo das privações, provocando uma mobilidade social nunca antes imaginada.

Mas foi nos anos sessenta que lançámos à terra as sementes do diabo. E os frutos amargos que hoje delas colhemos são o consumismo, a poluição, a globalização, a extinção das espécies, os transgénicos e o aquecimento global. Frutos que por sua vez são causas da crise, das desigualdades e do desemprego. Estamos ainda a digerir as transformações dos anos sessenta, e a adaptarmo-nos a elas. Em 1965, a população mundial era de 3,5 mil milhões de pessoas, e, desde esse ano até hoje, ela duplicou. Mas o planeta é o mesmo, e está mais maltratado. Já percebemos que, nalguns aspetos, fomos longe demais. Acreditámos que não havia limites, e agora sabemos que eles existem. E estão à vista.

Foi esse o nosso tempo.