segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Palavras Solenes

 Disse ao meu coração: «Olha por quantos
 Caminhos vãos andámos! Considera
 Agora, desta altura fria e austera,
 Os ermos que regaram nossos prantos...

 Pó e cinzas, onde houve flor e encantos!
 E noite, onde foi luz de Primavera!
 Olha a teus pés o Mundo e desespera,
 Semeador de sombras e quebrantos!»

 Porém o coração, feito valente
 Na escola da tortura repetida,
 E no uso do penar tornado crente,

 Respondeu: «Desta altura vejo o Amor!
 Viver não foi em vão, se é isto a vida,
 Nem foi de mais o desengano e a dor.»

Este belo soneto de Antero de Quental (Solemnia Verba) está gravado na parede da casa que o poeta habitou em Vila do Conde, hoje transformada em Centro de Estudos Anterianos. Ele encerra uma profunda lição de filosofia. Trata-se de uma reflexão sobre o paradoxo da Vida Humana e sobre o significado do Tempo. "Pó e cinzas, onde houve flor e encantos! / E noite, onde foi luz de Primavera!" poderia traduzir-se por " Pó e cinzas, quando houve flor e encantos! / E noite, quando foi luz de Primavera!"

A leitura deste belo soneto lembra um  outro de Camões "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades"  E, no último terceto do poema, eu consigo identificar Pessoa: "Tudo vale a pena, se a Alma não é pequena". Os grandes poetas sofrem das mesmas angústias e abordam os mesmos temas universais. E a língua portuguesa é maravilhosa para exprimir a subtileza do pensamento destes poetas filósofos.

Foi neste Verão que eu conheci a bela Cidade de Vila do Conde, a cidade com "mais escritores por metro quadrado" no dizer do meu amigo da Guarda, o professor e especialista em Literatura, Tozé  Dias de Almeida,  que me levou à descoberta dos caminhos e dos lugares que, na cidade, assinalam as suas ligações a  Antero de Quental, a José Régio, a Camilo Castelo Branco, a Agustina Bessa-Luís e a Eça de Queirós.

Eu não tenho pretensões a ser literato.  Com pena minha, e à exceção de Eça que sempre me acompanhou desde a adolescência, conheço mal as obras destes escritores. Mas senti sempre uma especial atração por Antero despertada pela magistral evocação que dele faz Eça de Queirós no artigo que escreveu após o seu suicídio nos Açores, em 1891, e que termina desta forma sublime: "um santo que muito padeceu  porque muito pensou, que muito  amou porque muito compreendeu, e que,  simples entre os simples, pondo a sua vasta  alma em curtos versos – era um  Génio e era um Santo". 

Inspirado por esta visita a Vila do Conde,  e sem o indispensável tempo sereno para me aventurar nos poemas de Antero - seguramente, pela amostra deste Solemnia Verba, a parte mais interessante da sua obra  -, fui reler o texto da conferência que ele, então um jovem de 29 anos,  proferiu no Casino de Lisboa - uma das célebres Conferências Democráticas do Casino - no dia 27 de maio de 1871 e que intitulou "Causas da decadência dos povos peninsulares nos últimos trezentos  anos".

Ao longo da sua longa intervenção, Antero compara a pujança medieval dos povos ibéricos com os seus cientistas, os seus artistas, os seus literatos, as suas universidades, e interroga-se sobre o que terá provocado - num curto período de algumas décadas, em meados do Século XVI- a ruína deste esplendor e a transformação da gente da península numa sombra do seu passado. As causas que ele aponta são três : 1) O catolicismo saído do Concílio de Trento, dogmático e limitador das liberdades, em oposição à corrente evangélica saída da Reforma e dolorosamente afirmada na Guerra dos 30 anos; 2) O absolutismo que anulou o antigo poder local, fomentou intrigas e produziu ociosidade; 3) A expansão resultante das descobertas e das conquistas que trouxe riqueza, mas não gerou indústrias nem desenvolvimento, contrariamente ao que fizeram os ingleses na Índia, caso que ele cita como exemplo.

É estimulante acompanhar o discurso do jovem Antero, perceber o sentido revolucionário que emana da sua mente. Antero chega a citar Adam Smith, o grande inspirador da nova economia então nascente; revolta-se contra o imobilismo, o compadrio e a corrupção. Ao terminar o seu discurso, depois de afirmar que Cristo nunca poderia ter sido católico, lembra o papel do cristianismo na transformação do Império Romano e aponta os seus princípios como inspiradores de uma nova e urgente revolução. Cento e quarenta e três anos depois daquela memorável noite em que Antero lança um grito cujo eco só chegaria ao povo português mais de cem anos depois, numa manhã de Abril, nós não questionamos o sentir republicano e democrático de Antero, mas duvidamos das causas por ele apontadas para a decadência dos povos ibéricos. Pois, eliminadas que foram as causas, não se deveria ter invertido a trajetória decadente?

Na ruidosa e inquietante confusão do nosso tempo, é salutar e revitalizador beber do pensamento tonificante de  um português esclarecido que foi um homem livre, um puro democrata e um verdadeiro socialista.

1 comentário:

  1. Recebido por email de J Carvalheira
    "Trento, o absolutismo e a expansão...
    O erro consiste em considerar que as causas
    da decadência "foram eliminadas".
    É que a hidra muda de cabeça muitas vezes,
    para continuar a ser a mesma hidra.
    Além de que nisto se trata de processos
    de longa duração, e não de gestos imediatos.
    Por ex., Espanha em relação a nós beneficiou
    do facto de o seu império ter encerrado
    cerca de um século antes do nosso,
    nas Caraíbas e nas Filipinas.
    Afora isso acho positivo, se não notável,
    que aqui se misturem espíritos científicos,
    fisico-químicos, ambientais...
    com espíritos poéticos, filosóficos, sociais,
    económicos...
    A sabedoria é essa e não há outra."

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