segunda-feira, 27 de outubro de 2014

As Tribos


Na vida nómada de caçador-recoletor a força e o sucesso do homo sapiens residia na tribo. Era a entreajuda entre os seus vários elementos que lhe permitia  preservar a vida, enfrentar os perigos do dia-a-dia, ter êxito nas caçadas, proteger os mais fracos e enfrentar os inimigos. Havia uma chefatura reconhecida - era o macho mais forte e mais astuto. O chefe invocava as divindades, conduzia os rituais, oferecia os sacrifícios, distribuía os alimentos. As diferentes tribos disputavam entre si os territórios e os seus recursos, e, ocasionalmente, uniam-se contra um inimigo comum.

A sedentarização ocorrida após a domesticação de animais e plantas, há dez mil anos, foi o início de uma caminhada que conduziu à sociedade industrial e à globalização. A organização social que se seguiu à fixação dos seres humanos nos primeiros povoados terá sido  muito simples e baseada na experiência tribal. Mas a exigência provocada pelo crescimento das aglomerações obrigava a novas funções e à sua especialização. A consequência foi um grande avanço organizativo em relação à tribo. Surgiram os construtores de casas, os agricultores, os pastores, os defensores. A diferenciação social esteve na base de um estado rudimentar com as suas hierarquias e a sua administração.

A complexa sociedade atual globalizada e interdependente, dominada pela economia, está muito longe da tribo. Mas, se atentarmos bem, constatamos que continuam a existir tribos dentro da sociedade global: a tribo dos ricos e a tribo dos pobres, as tribos do futebol, as tribos da política, as tribos da cultura, as tribos elitistas, as tribos religiosas. São tribos que, muitas vezes, partilham os mesmos territórios e que se interpenetram. Nalguns casos organizam-se de forma secreta e têm interesses ocultos que se sobrepõem ao interesse dos Estados. Na política partidária, o partido desempenha o papel da tribo, e, quando  trata de favorecer os seus membros, isso tem reflexos na corrupção, no carreirismo, nos lobbies e na promiscuidade das relações entre economia e política.

Vivemos na emergência de uma crise civilizacional, provocada pela escassez de recursos, pelo excesso demográfico e pela degradação ambiental. As tribos, na ânsia de conquistar território ou de ganhar poder, foram sempre a causa das guerras. Mas na economia global e interdependente já não sobra lugar para guerras tribais, pois o seu custo seria doloroso e representaria um grave retrocesso da humanidade. Como único caminho, capaz de salvar a civilização, resta-nos unificar as tribos belicosas. Nalguns casos, quando o seu objetivo é mafioso, racista, sectário ou terrorista será mesmo necessário eliminá-las. O caminho não vai ser fácil.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

O Elevador Social

Há quem critique os pastores
por eles não serem estudados
Se fossem todos doutores
que seria dos nossos gados?
 Quadra afixada numa queijaria da Beira Baixa
Autor desconhecido



Nos anos 30 do século passado, uma vez estabilizadas as finanças públicas, Salazar idealizou para Portugal um modelo de sociedade corporativa assente na boa ordem social, no amor da Pátria,  na família e na tradição católica. O condicionamento industrial visava preservar a concorrência desenfreada e proteger os grupos económicos em ascensão. Portugal continuaria, pois, a ser um país essencialmente rural. As colónias eram ainda vistas como mercados de exportação e fontes de matérias primas.  As elites governantes da República radicavam na indústria e  na agricultura latifundiária, mas estavam em ascensão as hierarquias militares e académicas.  A educação superior destinava-se aos jovens provenientes dessas  elites. Para as massas populares bastava aprender a lêr, escrever e contar. Ocasionalmente, o seminário - tinha sido o caso do ditador - entreabria uma estreita via de acesso às camadas superiores.

Mas o mundo no pós guerra  passava por transformações muito profundas que se não  compadeciam com este bucólico modelo. Estava a ocorrer a segunda revolução industrial, a da mobilidade, que iria transformar radicalmente a forma de viver das sociedades ocidentais. O automóvel iria provocar o desenvolvimento das cidades, a mecanização e os fertilizantes estavam a  transformar a agricultura. O mundo entrava aceleradamente na era da globalização. O desenvolvimento atraía a Portugal as grandes multinacionais, favorecia-se o consumismo. Nesse período, florescem as atividades ligadas à banca e aos seguros, nasce o marketing e as funções com ele relacionadas: vendas, publicidade, merchandising, estudos de mercado. Emergem novas e mais sofisticadas formas de distribuição dos produtos. A rádio primeiro,  a televisão depois generalizam-se; empregam gente e afirmam-se como poderosos meios de comunicação e de publicidade.

Fruto do desenvolvimento, cresce o emprego e surgem novas profissões que requerem novas exigências. O acesso à educação explode nos anos 60. Como consequência, os campos começam a esvaziar-se. A educação transforma os filhos dos agricultores em doutores que passam a relacionar-se e a conviver, de igual para igual, com os filhos das velhas elites. A partir dos anos sessenta do século passado, o acesso das camadas menos favorecidas à universidade foi a causa principal para a criação de novas elites. A educação foi  o elevador social que favoreceu a ascensão.

Em abril de 1974, o Portugal que fez a revolução dos cravos era já um país diferente . E foram já, em grande parte,  as novas elites que assumiram o poder e a liderança. Durante as décadas que se seguiram,  foram criadas novas universidades, proliferaram os cursos. Os mais jovens, que aspiravam a seguir a carreira dos pais, habituaram-se a ver no diploma o passaporte para o emprego e para o sucesso.  Ser engenheiro, economista, médico ou professor era sinónimo de emprego garantido.

Com a crise as coisas mudaram e o diploma deixou de ser garantia de emprego. O elevador social está fechado à chave -acessível a muito poucos -, ou só conduz à cave. Entretanto os lugares na  base da pirâmide foram ocupados por imigrantes e aos jovens licenciados resta-lhes, em alternativa ao desemprego, a emigração.

Chegou o momento de rever o papel da educação. Nós temos de formar a geração que vai fazer a Transição. As palavras de ordem terão a ver com sustentabilidade e responsabilidade. Vai ser preciso formar jovens com capacidade critica e com criatividade.  Será preciso mudar os valores no sentido que um dia Ernâni Lopes apontou, substituindo aqueles que, passo a citar, "hoje lhes servem de referência, que mostram que para se ter sucesso – poder e dinheiro – o trabalho, a honestidade e o conhecimento não fazem falta."
E foi aquele economista que nos deixou a tabela da conversão do que é para o que deve ser:
Facilitismo ------- Exigência
Vulgaridade ------ Excelência
Ignorância -------- Conhecimento
Mandriice -------- Trabalho
Aldrabice ---------Honestidade
Videirismo ------- Honra
Golpada ---------- Seriedade
Moleza ----------- Dureza

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

A Entrevista de Hawking

Stephen Hawking, o conhecido físico inglês, concedeu uma entrevista ao jornal madrileno El Mundo, a qual foi reproduzida pelo  Expresso. É fascinante ouvir um homem paralisado por uma atrofia muscular, todo ele neurónios e inteligência, falar-nos da paradoxia que é a criação da matéria. Para Hawking, a Física Quântica estará, concetualmente, muito próximo de identificar as partículas e explicar as forças e os mecanismos que estão subjacentes à organização da matéria. Para ele, isso vem resolver a paradoxia, o que permite dispensar Deus. Em resumo: Hawking declara-se ateu.

O Universo é muito antigo e é muito grande. A idade e o tamanho do Universo - falamos do Tempo e o Espaço de Einstein -, confundem-se e confundem-nos.  O Universo continua a envelhecer  e a dilatar-se. A seta unidirecional do Tempo confere um sentido à evolução da matéria criada.  É neste sentido, focalizados na intenção de o perceber, que nos devemos deter. Tudo começou no plasma indiferenciado; depois formaram-se os átomos dos diferentes elementos: primeiro os mais leves, depois os mais pesados. Num determinado momento, no mundo que habitamos, as moléculas de certos compostos de carbono aprenderam a replicar-se: nasceu a vida. No nosso planeta, nos últimos 750 milhões de anos, sucederam-se os impactos de meteoritos, as convulsões vulcânicas, as glaciações. Espécies proliferaram em terra e nos oceanos; em certas ocasiões extinguiram-se em massa; noutras ressurgiram sob novas formas. Impelida por uma estranho desígnio - que a Física Quântica não explicou-, a Vida floresceu, resistiu e os organismos vivos adaptaram-se e evoluíram.

Há quatro milhões de anos um primata, caminhando ereto e com uma grande agilidade manual, adquire consciência da sua existência e do seu ser.  Muito mais recentemente, há apenas cerca de dez mil anos, um descendente daquele, o homo sapiens, dotado de inteligência reflexiva e criativa, adquiriu um grande ascendente sobre as outras espécies, começou a espalhar-se e, em muito pouco tempo, ocupou o planeta.  A  Vida, a Inteligência e a complexidade crescente são os marcos que balizam o sentido da evolução da matéria.

Voltemos a Stephen Hawking, ele próprio um fruto da evolução.  Foi, sem dúvida, enorme o avanço que, nos últimos cem anos,  a ciência nos trouxe sobre a estrutura da matéria.  Mas o conhecimento científico explica o como, mas não justifica o porquê. Será que já não precisamos de Deus para responder às nossas dúvidas mais profundas, para entender o sentido da evolução? Ou, ter-se-á finalmente cumprido a ambição de Adão no Paraíso Terrestre e seremos nós o próprio Deus? A coisa criada poderá ocupar o lugar do Criador?

Desde Galileu que a Terra deixou de ser o centro do Sistema Solar. E com Edwin Hubble aprendemos que o nosso lugar no Universo é discreto, sem especial relevância nem centralidade. Ganhámos um conhecimento novo, mas abandonámos crenças antigas e ficámos perdidos diante da vastidão do que nos rodeia. E suspeitamos de que haverá outras revelações surpreendentes, provavelmente outros universos para além do nosso. Cada nova descoberta, parece trazer mais dúvidas do que respostas.

Entre as convicções de Hawking estará também a de que a civilização humana não tem futuro na Terra. A extinção da espécie pode ser provocada por um cataclismo, pelo impacto de um meteorito, por uma glaciação ou outra alteração climática. Muito provavelmente, à semelhança do que aconteceu com outras,  acontecerá a esta espécie entrar num cul-de-sac evolutivo,  provocado pela rutura do complexo sistema ecológico que ela própria criou: uma grande especialização e interdependência entre indivíduos baseada em complexos sistemas externos, vulnerabilidade a doenças infeciosas, dependência crítica de recursos escassos e não renováveis.

Para o famoso físico, a sobrevivência da Humanidade  estará na colonização de outros planetas. Sobre este ponto, discordo totalmente. O homem está prisioneiro do sistema solar. Tal como a Moisés, a quem antes de morrer, foi apenas mostrada a terra prometida no Monte Nebo, também as estrelas e as galáxias foram reveladas ao Homem mas está-lhe vedado o acesso, e nunca as alcançará. Imaginar elementos da espécie humana preservados pelo frio, viajando durante milhões de anos até outros ambientes habitáveis, situados em lugares incertos, só pode acontecer no domínio da ficção.

A definição do sentido da evolução  nunca esteve nas mãos do homem. Ele próprio é um efeito desse processo evolutivo. Mas esse sentido existe  e o homem não o poderá contrariar. Deus já não faz falta a Hawking, mas o vazio provocado pela angústia instigada pela consciência do eu - que Deus veio preencher - persiste em manter-se. Duvido que, algum dia, a  ciência  o venha substituir.


segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Pensar o Futuro

Noutros tempos, a rentrée marcava o início das aulas, a abertura da caça e assinalava a chegada da temporada dos espetáculos teatrais e musicais. Agora, está dominada pelas conferências e pelos debates. Depois de, na semana passada, se ter falado de Liberdade no CCB, a Fundação Gulbenkian vai por estes dias promover um debate sobre o tema - Pensar o Futuro de Portugal. Os promotores da iniciativa pretendem que se debatam as políticas para o futuro do nosso país, por constatarem que esse debate e essas políticas têm estado ausentes da governação e da discussão. No clima de desorientação estratégica em que nos encontramos, e em vésperas da apresentação do orçamento para 2015, convenhamos que a iniciativa é oportuna e louvável.

Na Gulbenkian vão estar a apresentar os tópicos quinze personalidades, quase todas ligadas ao mundo académico. Auxiliados por um vídeo promocional, em que cada um dos palestrantes surge a apresentar resumidamente qual o tema da sua intervenção, ficamos com uma ideia antecipada do que ali se vai dizer. É importante debater o futuro de Portugal, mas falta neste debate, na minha opinião, um enquadramento mais amplo que ajude a contextualizar o tema. No tempo da Globalização já não se pode falar do futuro de um país ou de uma região como se ele fosse uma coisa isolada. Não é possível pensar o futuro de Portugal, nem fazer propostas sobre políticas a adotar, sem ter em conta o futuro do mundo ou sem equacionar os caminhos da Europa.

Neste caso, seria útil ao debate mostrar ou antever o pano de fundo onde se jogará o futuro de Portugal. Para esse efeito, poderia recorrer-se ao trabalho já feito por outros e assumir os pressupostos fundamentais que hoje são aceites de forma amplamente consensual. Falo, por exemplo, da escassez de recursos - especialmente energéticos, hídricos e alimentares -, das alterações climáticas, da poluição e do problema demográfico. Mesmo que o livro de Al Gore, O Futuro, pelo seu pendor - orientado para os mass media - não agrade a muitos académicos, depois de expurgado de algum conteúdo mais sensacionalista e especulativo, poderia servir de base de trabalho e cumprir a função referida.

Na antevisão das conferências perpassa a trivialidade dos temas ou o déjà vu - numa conferência destas valerá a pena perder tempo com mais propostas de revisões eleitorais?! -,insiste-se na via do crescimento, na inovação sem precisar o sentido, faltam claramente ideias criativas e propostas ousadas de rutura. Estão ausentes da discussão alguns dos temas mais fraturantes da sociedade portuguesa, temas que têm a ver, por exemplo, com a educação (educar para quê?), com a agricultura - a que está associada a delicada questão da terra -, com a energia, com a demografia, com a imigração, com a Europa e com a soberania.

Prever, adivinhar ou antever o futuro era dom dos demiurgos através dos quais se manifestavam as divindades. Mas o futuro já não pertence a Deus. A ciência e o determinismo já explicam muita coisa e sabemos hoje, pela imprevisível complexidade da matéria, que o futuro também se joga entre a harmonia da ordem e a atração do caos. Mas muito do que irá ser o futuro - para nosso bem e para nosso mal - está nas mãos dos homens. E seria bom que a tarefa de fazer as opções sobre os caminhos a seguir fosse entregue aos melhores e aos mais esclarecidos.