quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Sócrates vs. Sócrates

Há 2500 anos, na Grécia antiga, viveu em Atenas um filósofo de nome Sócrates que foi imortalizado por alguns dos seus discípulos, de entre os quais se destacou Platão, que nos livros que escreveu deu a conhecer o pensamento do grande filósofo. A frase lapidar de Sócrates, "só sei que nada sei", simboliza a sua incessante procura da Verdade e revela a humildade de quem reconhece a dificuldade - ou a impossibilidade! - em atingir o verdadeiro conhecimento, o espistemé. Por amor à Verdade e à Justiça, Sócrates aceitou o veredito de quem o acusava de não obedecer aos deuses e de, com as suas ideias, perverter os jovens. Bebeu voluntariamente, até à última gota, a cicuta letal para cumprir a sentença à pena capital a que fora condenado pelos juízes de Atenas.

Na atualidade portuguesa, suspeito de enriquecimento ilícito, um outro Sócrates enche os noticiários das televisões e as páginas dos jornais. A suspeição, que recai sobre este ex-governante, liberta incontidas emoções nos espíritos, causa polémica nos debates e incendeia paixões. A opinião sobre a sua pessoa e os factos que levaram à sua detenção - raramente vista com indiferença -, é o assunto mais fraturante da sociedade portuguesa nos dias que correm.

Estas duas personagens parecem ter em comum apenas o nome. O ateniense valoriza a verdade, está desapegado do poder e das riquezas materiais. Ele sabe que só o verdadeiro conhecimento lhe traz a sabedoria. O lusitano mostra acreditar que só tem certezas: "sabe que tudo sabe". Neste aspeto, estará próximo dos sofistas gregos que usavam a retórica para convencer o povo e para quem a doxa importava mais do que o epistemê. O português faz lembrar os príncipes da renascença ciosos dos seus séquitos e amantes da envolvência perfumada do poder. E traz-nos à memória O Príncipe de Nicolau Maquiavel, a cartilha para conquistar e preservar o poder e que, neste domínio, defende o princípio de que os fins justificam os meios.

Na Europa Medieval, e nos anos que precederam a Revolução Francesa e a independência da América, o poder era considerado como tendo origem divina. O soberano administrava a justiça e só prestava contas a Deus ou à igreja que o representava. De tal modo, que na Inglaterra de Henrique VIII a igreja incómoda foi subjugada ao poder do soberano. Mas, em última análise e na ausência de uma moderação acima dos homens, só a força das armas ou os jogos de poder asseguravam a sua manutenção.

Nos modernos estados ocidentais laicos a religião - mais propriamente a igreja - já tem pouca influência. O poder democrático emana do povo e são as leis produzidas pelos seus representantes que o regulam e limitam. Mas a democracia tem-se revelado imperfeita: após a revolução industrial a economia e a sua exigência em fortalecer o poder industrial e financeiro sobrepuseram-se e condicionaram o poder político. No nosso tempo a globalização - afinal a economia! -, impondo a submissão dos governos aos mercados, é um outro forte condicionante do poder. Não esquecendo o poder dos media que, quando manipulados fazem opinião, constroem e destroem a imagem dos políticos e, deste modo, interferem com o sentido do voto.

No plano das leis e dos princípios - se quisermos até no plano moral, pois legal e moral tendem a confundir-se-, o poder da Justiça acaba por ser a única limitação ao poder político e económico. Por isso, nos estados democráticos o poder judicial independente adquire uma nova força. O caso do impeachment do presidente Nixon ocorrido nos EUA, depois de um complexo e prolongado processo judicial, ficará para a história como um caso exemplar. No Portugal recente temos tido exemplos desta situação, veja-se, por exemplo, a atuação do Tribunal Constitucional. E não existe alternativa nem proposta para outro poder moderador que não seja o judicial.

Sócrates está, assim, nas antípodas de Sócrates. Nas encruzilhadas da vida que, a cada momento, surgem na nossa frente uma escolha exclui a outra. E não se trata apenas de escolher entre pessoas, mas entre arquétipos subjacentes a valores éticos. A opção, que fizermos, irá condicionar o nosso futuro.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

A encruzilhada do G20

Criado em 1999, o G20 ou Grupo dos 20 integra as dezanove mais importantes economias mundiais a que se juntou a União Europeia. Para debater a economia global, reúnem-se anualmente os chefes de governo, os ministros das finanças e os presidentes dos bancos centrais dos países mais importantes (os pertencentes ao G7). Este grupo assume-se como cão de guarda da economia liberal e global. Os seus princípios ficaram consignados no acordo saído da reunião de 2004 que teve lugar em Berlim. No comunicado, aprovado nessa reunião, defendem-se claramente como objetivos do grupo as ideias do liberalismo económico e do reforço da globalização: a eliminação das restrições ao movimento do capital internacional; a implementação de políticas de desregulação; a flexibilização do mercado de trabalho; a defesa da propriedade intelectual e da propriedade privada; a liberalização do comércio global, tanto de forma bilateral como no seio da Organização Mundial do Comércio (OMC).

A recente reunião do Grupo em Brisbane, na Austrália, trouxe ao de cima algumas das tensões existentes no seu seio, das quais destaco: a questão da Ucrânia e o futuro papel da Rússia na economia global; o adiamento - que estava agendado - da discussão sobre as alterações climáticas; a velada contestação à liderança do cluster anglosaxónico por parte dos países emergentes. Um pouco por toda a parte, com o desenvolvimento da crise e a crescente dificuldade em encontrar respostas pela via da economia, começam a ser defendidas políticas protecionistas e restrições à livre circulação de pessoas. Movimentos independentistas - como acontece na Escócia e na Catalunha - contrariam a política do G20, ao mesmo tempo que se assiste a uma ascensão de partidos e movimentos conservadores e ao renascer de ideais xenófobos e racistas.

A questão da Ucrânia, onde as sanções económicas contrariam frontalmente o neoliberalismo defendido pelo G20, acabou por se impor à agenda da reunião e dominou a cimeira. Os quatro países anglosaxónicos (EUA, UK, Canadá e Austrália) presentes na cimeira, protagonizaram o papel anti-Rússia. Por seu lado, a Europa vacila: Hollande faz birra, protelando a entrega do submarino encomendado pelos russos, e a Alemanha está confusa e dividida perante o efeito boomerang das sanções sobre a sua própria economia.

Entretanto, liderados pela Rússia e pela China, os países emergentes parecem querer afirmar uma agenda própria dentro do Grupo. Identificaram a ameaça do TTIP - a anunciada parceria para o comércio e investimento do Atlântico Norte -, e procuram combater a hegemonia do dólar.

As alterações climáticas estiveram ausentes da agenda de Brisbane. Com o adiamento desta questão, procurou evitar-se a parte inconveniente da discussão, pois a urgência do tema põe em causa a orientação económica e desenvolvimentista do Grupo. Mas o planeta tem a sua agenda própria que não coincide necessariamente com a do G20. Não aceitará tréguas, não suspenderá as reações adversas, nem amenizará a ocorrência de fenómenos climáticos extremos, a que vamos assistindo um pouco por toda a parte.


segunda-feira, 17 de novembro de 2014

Eça de Queirós

Já passaram 114 anos sobre a morte do grande romancista e a obra que nos deixou continua a atrair a atenção de leitores, literatos e outros estudiosos. Ainda hoje, os seus livros são reeditados e, os mais representativos, adaptados ao teatro e ao cinema. As personagens dos seus romances - que sugerem uma tipologia social – fazem parte da nossa história e da nossa cultura. Pensamentos, apreciações e comentários, retirados dos seus escritos, são frequentemente citados e circulam na net, plenos de atualidade por encaixarem a preceito nos protagonistas e nas situações da nossa vida política e social. De onde vem a força desta escrita e a atualidade deste escritor?

Eça foi, acima de tudo, um atento e perspicaz observador de Portugal e do mundo. Da sociedade portuguesa da segunda metade do século XIX deixou-nos, enquanto romancista, um retrato cru e fiel. Dos conflitos e dos meandros da política mundial deixou-nos, enquanto jornalista, análises minuciosas e vaticínios acertados. A sua infância ficou marcada pela ausência de uma família que lhe deu o nome, mas lhe negou o aconchego do lar. O carinho tê-lo-á ele encontrado na ama que o amamentou em Vila do Conde e nos avós paternos que, perto de Aveiro, o acolheram e educaram na meninice. Ao contrário da mãe, fria e ausente, a figura e a personalidade do pai acompanhou-o e influenciou-o pela vida fora. A singularidade do seu nascimento fez dele um outsider e deu- lhe a autonomia afetiva que lhe conferiu distanciamento e independência crítica. A ironia, em que Eça revela argúcia e inteligência, foi a marca desse distanciamento.

O lustro de Coimbra foi o tempo de aprendizagem e de gestação, estimulada pelo fermento da cultura francesa e pelo contacto com amigos, dos quais se destacou Antero de Quental, que exerceu nele uma forte impressão. Lisboa, onde viveu durante algum tempo depois de terminado o curso, foi a descoberta da grande cidade, o contacto com a política e com a sociedade. Em Évora, como diretor e único redator do Distrito de Évora foi destilando o seu jeito para a crítica e apurando a mão para a escrita. A viagem ao Egipto, onde assistiu à inauguração do Canal de Suez, e o deslumbramento da Terra Santa abriram-lhe a primeira janela para o mundo e marcaram-no para sempre.

Leiria, onde desempenhou o cargo de administrador do distrito, foi o palco do seu primeiro romance. No Crime do Padre Amaro, o livro que ele trazia no ventre, ousa pôr em pratica o realismo como escola literária e abordar os temas tabú da religião e do sexo. O estilo da prosa, que irá apurar nos romances subsequentes, evidencia já o arrojo da inovação tão bem caraterizado por Ernesto Guerra da Cal, o autor galego que mais profundamente estudou a sua linguagem e o seu estilo. Já nessa primeira obra se mostra a prosa criativa em que os adjetivos geradores de contrastes, conferindo tonalidades e melodia à narrativa, parecem desempenhar o papel da luz nos quadros dos pintores impressionistas.

A primeira experiência consular foi em Cuba, a partir daí não deixaria nunca mais de ser um expatriado, primeiro em Inglaterra e depois em França. Nunca fez amigos estrangeiros, pois o seu campo de observação estava em Portugal e o universo da sua ficção foi sempre português. Três romances, laboriosamente escritos e dolorosamente revistos, sempre na busca da perfeição, constituem o esqueleto da sua obra: O Crime do Padre Amaro, a explosão e a vitalidade da juventude; O Primo Basílio, o grande ensaio de estudo e caracterização de personagens e apuramento do estilo; Os Maias que são a sua obra prima, longamente pensada e amadurecida. Nestes três romances não existem heróis, apenas pessoas, enredadas nos seus defeitos e atormentadas nas suas dúvidas. Amélia d'O Crime do Padre Amaro e Luísa d'O Primo Basílio são os personagens centrais da ação, motivadas pelo fogo da paixão a pela força do enleio amoroso. N'Os Maias a arquitetura da narrativa ganha outra dimensão: a figura central é Afonso da Maia, o patriarca da família, onde, como num quadro, converge o ponto de fuga de toda a trama. Não será por coincidência que todas estas figuras centrais dos seus romances, incapazes de resolver ou superar as paixões - casos de Amélia e de Luísa - ou abandonar as convicções - caso de Afonso da Maia -, morrem no final dos romances.

Eça foi um eterno insatisfeito, parecia hesitar entre o que era e o que gostaria de ter sido. As suas opções pessoais, raramente afirmadas na primeira pessoa, oscilavam entre o espírito progressista do Cenáculo na juventude e o pendor conservador dos Vencidos da Vida, na idade madura. A sua personalidade parece flutuar entre o laicismo e a religião, entre a república e a monarquia, entre a cultura e a aristocracia, entre a vida familiar e a vida social, entre a tradição e a civilização. Fradique Mendes é o seu alter-ego, um contraponto paradoxal de si próprio que, tal como os espelhos das feiras, refletem as imagens invertidas e deformadas.

Morreu em Paris, aos 55 anos, no primeiro ano do século XX. Se não tivesse morrido tão novo, podemos imaginar como teriam sido os anos da sua velhice, depois de regressado a Portugal. Os seus últimos escritos sugerem-nos um Eça a viver em Tormes, à semelhança dos retiros de Herculano ou Lev Tolstoi, rendido à natureza, inspirado pela vida dos santos e procurando as coisas simples da vida.

Eça libertou-se do tempo e foi um visionário. Foi um artista que deu um novo fôlego à língua portuguesa. Para muitos, depois de Camões, ele foi o nosso maior escritor de todos os tempos.


segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Grécia e Portugal

A Grécia é um santuário, berço da Civilização Ocidental. Aí nasceu a Filosofia, mãe das ciências, e a Democracia, mãe do moderno estado organizado. O grego foi a língua que formatou o nosso pensamento cientifico e deu nomes às ciências, e significantes aos conceitos que utilizam. Não podemos ignorar os contributos dos romanos e do latim; dos judeus cujo pensamento, enxertado no pensamento grego, produziu o cristianismo; do ressurgimento renascentista ligado às artes e ao comércio das repúblicas italianas; da expansão ibérica que revelou os novos mundos; das luzes do iluminismo francês e da revolução industrial nascida em Inglaterra, que foi a antecâmara da moderna economia e da globalização. Mas são gregos os genes da Civilização que domina a Terra.

No passado mês de Abril, convidado por um casal amigo, visitei a Grécia acompanhado pela minha mulher. Escrevi, então, sobre as fortes impressões que essa viagem me causou num texto que intitulei as sementes da democracia, o qual acabou por ser publicado nas páginas do semanário Expresso.  Foi com emotiva surpresa que, passados alguns dias após essa publicação, recebi na Fundação uma chamada telefónica da  Embaixada da Grécia dizendo que o Embaixador tinha gostado de ler o artigo e gostaria de me conhecer.

A oportunidade chegou na semana passada . Recebi um convite do Sr. Embaixador Panos Kalogeropoulos para assistir a uma cerimónia na sua residência em Lisboa. Tratava-se de homenagear a professora jubilada Maria Helena da Rocha Pereira, a quem iria ser entregue a Cruz da Ordem da Fénix que lhe fora atribuída pelo presidente da República Grega. E, assim, no final da tarde de quarta feira, dia 5 de novembro, vesti o meu fato-de-ver-a-Deus e lá fui ao Restelo.

Fui recebido pela secretária da embaixada que me introduziu na sala de estar onde o embaixador recebia os convidados. Ao ouvir o meu nome, cumprimentou-me com um sorriso afetuoso e um breve comentário, associando-me de imediato ao artigo do Expresso: - As sementes da democracia ! Apontou-me a homenageada: junto a uma lareira, sentada numa cadeira e denunciando uma clara dificuldade de locomoção, estava uma senhora de proveta idade e aspeto franzino. Era a professora Maria Helena da Rocha Pereira,  a primeira mulher que ascendeu à cátedra na secular Universidade de Coimbra, arqueóloga, helenista, investigadora e uma impressionante obra produzida. Parecia incrível e irreal que aquelas mãos tivessem escrito tantos artigos e que aquela mente pudesse ter traduzido a República de Platão, as Bacantes de Eurípedes ou a Antígona de Sófocles. Senti-me tentado  a  ir cumprimentá-la, e beijar-lhe as mãos. Mas não o fiz, por temer que a minha insignificância e limitada cultura pudessem profanar aquela serena e doce figura.

O Embaixador Kalogeropoulos fez o elogio da homenageada, destacou a sua obra, o seu impacto tanto a nível nacional como internacional, antes de lhe colocar no peito a insígnia que lhe tinha sido atribuída. 
A professora, de uma forma clara e concisa, leu um discurso em que se referiu à importância da cultura grega e à beleza da sua linguagem, onde destacou o dialeto Ático. Com a  sabedoria de quem sabe do que fala, aquela ilustre professora apresentava-se, aos meus olhos e  naquele momento, como uma ponte cultural  que ligava Portugal e a Grécia.

No cocktail que se seguiu, de copo na mão, senti-me perdido no meio daquela gente onde não conhecia ninguém; arrisquei estabelecer conversa com um grupo que estava mais perto, declarei-me náufrago e pedi ajuda. Os meus solícitos salvadores eram arqueólogos, antigos alunos e colaboradores da professora, também eles agora professores, um no Porto outro em Coimbra. E estava também um sobrinho da homenageada. Respirei fundo; estava salvo. Falámos da Grécia, de Creta, de Micenas e de Delfos. Foi com imenso prazer que 
ouvi aqueles ilustres professores falar de escavações e de fragmentos de vasos gregos descobertos em Trás-os-Montes. Um deles tinha, inclusive, escavado na Ágora, em Atenas.  E ocorreu-me comparar a Psicologia,  a ciência que se ocupa do estudo da alma do Homem, com a Arqueologia, que é a ciência que se ocupa do estudo da alma da Humanidade.

No final, despedi-me do embaixador com um Kalinixta, desejando-lhe uma boa noite e agradecendo-lhe tão honroso convite. A minha aventura grega não podia ter terminado de melhor forma.

PS: As sementes da democracia pode ser lido aqui

segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Homo Sapiens Digitalis

Uma notícia recente sobre o volume de mensagens de correio eletrónico, que circulam na Internet, despertou a minha atenção. No essencial, dizia que a primeira mensagem de correio eletrónico foi enviada há 45 anos e que, na atualidade, em média, são enviados 100 milhões de emails em cada minuto. Considerando os múltiplos destinatários imagino que serão recebidas muitos mais. A referida noticia acrescentava ainda que, só em 2012, foram criadas 3,3 mil milhões de novas contas de email, e apenas um terço delas por motivos profissionais. No entanto, apenas 14% das mensagens recebidas são consideradas importantes. Em determinadas profissões, o tempo de trabalho dedicado ao email chega a representar 28% por cento do total.

 A magnitude destes números não espantará muitos de nós, conscientes como estamos de quão dependente está a nossa vida diária do computador e da Internet. Mas importa refletir sobre o seu significado e a revolução digital que lhe está subjacente, da qual eles apenas representam uma pequena parte. A verdadeira explosão na utilização do correio eletrónico ocorreu nos últimos 20 anos, com o crescimento exponencial do acesso à Internet e da difusão dos dispositivos digitais - computadores, notebooks, ipads, e smartphones. A humanidade está ligada por uma rede gigantesca que, aos poucos, está a transformar a nossa maneira de viver: o comércio, o entretenimento, a informação, a cultura, a comunicação, a literatura e a publicidade. Mais recentemente, as redes sociais começaram a apropriar-se do convívio entre as pessoas; a contestação social achou eco na rede: os indignados encontram-se na net e planeiam aí as suas manifestações.

Os jovens já não dispensam a Internet. Um estudo recente do ISPA (Instituto Superior de Psicologia Aplicada), feito junto de adolescentes entre os 14 e os 25 anos, mostra que três quartos da população desse grupo apresenta sinais de dependência da internet. E conclui que 13% dos casos estudados são graves: caracterizam-se por isolamento, comportamentos violentos, e inclusive, podem obrigar a tratamento. Ora, o uso da Internet começa cada vez mais cedo, mesmo na mais tenra idade. Quando um bebé carrega furiosamente com o dedo nas páginas ilustradas de um livro para tentar interagir com as imagens, como se se tratasse de imagens no ecrã de um ipad, isso revela que esse comportamento já faz parte da uma aprendizagem muito profunda e sugere a aquisição de uma capacidade que começa a incorporar-se nos genes da espécie humana.

Estamos efetivamente perante algo que foi adquirido, que passou a fazer parte de um processo evolutivo no sentido que lhe deu Charles Darwin. Trata-se de uma nova etapa na linha da evolução, que começou com a linguagem, com a escrita e a imprensa. Estes saltos estão associados a um aumento da complexidade. Com a escrita, à nova capacidade associaram-se ferramentas: o estilete, a argila mole, a tinta e o papiro. Com a internet a complexidade exige uma base tecnológica e energética - falo dos suportes, da eletricidade e das ondas hetzianas que transportam os sinais digitais -, a que corresponde uma grande vulnerabilidade e um elevado risco de colapso.

Ora quando, como resultado do processo evolutivo, uma espécie adquire uma nova capacidade, já não existe caminho de retrocesso, isto é, a natureza não aceita a desevolução. E se a ferramenta ou transformação morfológica associada à nova capacidade deixar de ser útil, o caminho pode ser o da extinção da espécie. Então, tal como acontece num formigueiro com a capacidade de comunicação e orientação das formigas, a capacidade digital do homem, sendo essencial, já não depende da habilidade individual, mas passou a ser um atributo da espécie como entidade social.

Em conclusão: nos últimos 20 anos a espécie humana entrou num caminho evolutivo irreversível. Por isso, já não é admissível um blackout digital, embora não seja desprezível o risco de isso acontecer. Pode resultar de quebra prolongada da rede eléctrica, de um vírus altamente eficaz, de uma interferência nas infraestruturas que suportam a rede ou até de uma tempestade solar. Um apagão digital interferiria seriamente nas nossas vidas: seria o caos nas transações financeiras, na cobrança de impostos, nos pagamentos, nas comunicações, na logística das redes de abastecimentos, na saúde, na educação, na justiça, etc. É bom irmos tomando consciência dos riscos associados às malhas que vamos tecendo.