segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Guardar a Memória

Os registos que os nossos antepassados nos deixaram, esculpidos nas pedras ou escritos no papiro e na argila mole, constituem um importante património da Humanidade. Mas foi com o papel que se fez história e que se estruturou a civilização. Com a invenção da escrita nasceu a História; com a invenção da imprensa nasceu a Globalização.

Mas em tempo algum a capacidade de documentar e armazenar as ideias e os acontecimentos, isto é, a capacidade de criar memória para as gerações vindouras, foi tão ampla como na era digital. E essa capacidade está a crescer exponencialmente. Os registos digitais podem replicar-se até ao infinito e, se destruídos num local, podem preservar-se em muitos outros. No futuro, os seres humanos poderão aceder a uma quantidade gigantesca de registos digitais - de texto, de imagens e sons - sobre factos e acontecimentos produzidos ou ocorridos no tempo das gerações que os precederam.

No mundo digital os arquivos serão guardados em suportes digitais. Suportes que já existem a vários níveis: a nível das pessoas, das famílias, nas empresas, nas organizações, nos meios de informação, e nos gigantescos arquivos alojados nos servidores da Google, da Apple, do Youtube, do Facebook. Com efeito, muita da informação que produzimos - por exemplo, os emails que trocamos ou as fotografias que partilhamos - já não reside nos nossos computadores, mas nos clouds dessas grandes empresas.

No futuro, a forma como se vão arquivar e o modo de aceder aos documentos produzidos na era digital são questões com as quais vamos ter de nos confrontar. A quem caberá a incumbência de guardar e preservar os arquivos digitais? Qual a possibilidade e o risco de poderem vir a ser manipulados? Qual a longevidade e fiabilidade dos suportes que os contêm? Como assegurar a compatibilidade dos diferentes sistemas de gravação? Qual o risco de haver impedimento ou restrição no seu acesso, associado à dependência da eletricidade e das redes de comunicação? Paralelamente vão colocar-se problemas relacionados com o uso da informação, com as ameaças à liberdade das pessoas, com a invasão da sua privacidade. Basta pensar que uma informação falsa ou maldosa - uma foto, por exemplo - sobre uma pessoa, uma vez posta a circular na rede, dificilmente poderá ser apagada.

Os investigadores do futuro - historiadores, sociólogos, antropólogos - terão à sua disposição arquivos imensos. Como irá a Humanidade conviver com esta tão vasta memória coletiva? Será a memória acumulada uma forma de ampliar a liberdade do homem? Ou será ela limitativa dessa mesma liberdade? Não constituirá ela um pesado lastro que acabará por enredar a Humanidade, absorvida na introspeção de si mesma, e impedi-la de evoluir? A memória das catástrofes e das guerras, ao diluir-se no tempo, é benevolente e liberta-nos dos pesadelos passados. Mas a memória digital, fiel, objetiva e indestrutível, pode manter-se atuante e implacável.

A memória digital tanto pode ser a luz que guia como pode ser uma enorme teia que, ao enredar-nos, impede e limita a criatividade. Um holocausto nuclear pode reservar a esta memória coletiva o destino trágico da Biblioteca de Alexandria, de cujos escombros não restará nem Memória nem Humanidade. Mas pode também acontecer que estejamos a subir mais um degrau a caminho do ponto ómega de que falava o padre Teilhard Chardin, onde o que conta já não é o Individuo, mas a Humanidade, uma entidade nova, dotada não apenas de Memória, mas também de Alma e de Inteligência.


segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

As Dimensões da Política

A paleta das tonalidades partidárias é muito vasta, existindo partidos para todos os gostos: mais ou menos liberais, mais à direita ou mais à esquerda, mais ou menos inspirados pela religião, mais conservadores ou mais tolerantes, socialistas, republicanos, nacionalistas, regionalistas, anarquistas ou radicais e comunistas. E surgem de quando em quando, quase sempre de forma efémera, pequenos partidos criados com vista à defesa de interesses de pequenas minorias ou de causas pontuais.

A recente vitória do Syriza na Grécia e a ascensão do Podemos em Espanha vieram contrariar a tradicional prevalência dos partidos liberais e socialistas que, nesses países e até agora, se têm alternado no poder. Na Grécia, o partido mais sacrificado com a vitória de Tsipras foi o PASOK. Também em Espanha, o crescimento do Podemos está a ser feito à custa do PSOE, o partido socialista tradicional. Trata-se de uma tendência com causas que radicam na crise e na austeridade que lhe sobreveio, e cujo desenvolvimento e consequências ainda não são fáceis de prever.

No mundo ocidental, até à revolução francesa e independência americana, foi sobretudo a dimensão religiosa que mais influenciou a política. No século XIX, os partidos parlamentares nascidos nas monarquias constitucionais e inspirados nas tradições dos velhos regimes, formaram-se com base nas elites oriundas da nobreza rural. A revolução industrial, com a produção em massa, provoca o aparecimento de uma nova classe operária fortemente organizada em associações de classe que começam a contestar a velha ordem. A Igreja com a sua doutrina social tenta adaptar-se ao novo mundo, ao mesmo tempo que as ideias de democracia de igualdade e de liberdade avançam e se afirmam.

O marxismo - tal como foi levado à prática por Lenine na União Soviética - rompe definitivamente com as velhas elites e com a tradição cristã, e introduz uma rotura drástica na organização económica. Pela primeira vez, questiona-se a propriedade privada da terra e dos meios de produção, e a transmissão dessa propriedade aos descendentes. O Estado passa a ter um papel completamente diferente como promotor de uma economia de novo tipo baseada na planificação da produção e não nas leis da concorrência. Entretanto, a inesperada abundância de recursos energéticos e o desenvolvimento tecnológico destroem a dicotomia capital-trabalho, permitem a criação de elevados níveis de conforto, libertam a mulher das tarefas do lar, e contribuem para o aparecimento de uma vasta classe média, fortemente consumista, que acaba por submergir o modelo marxista-leninista.

Nas democracias modernas, saídas do pós-guerra, temos assistido a uma alternância entre dois partidos de ideais muito próximos que aceitam, ambos, as leis da economia de mercado - propriedade privada, livre iniciativa e transmissão da propriedade - e se inspiram nos direitos do homem. A única receita que conhecem e propõem para o desenvolvimento social é a do crescimento económico. Divergem em aspetos relacionadas com a maior ou menor intervenção do Estado na economia, na maior ou menor abrangência do serviço social e na política fiscal que incentiva a criação e promove a distribuição da riqueza. Estes partidos alicerçam-se em novas elites que tudo fazem para influenciar a opinião pública -que vota!- e, assim, se perpetuar no poder.

Os novos partidos emergentes - falo do Syriza e do Podemos - são a consequência do progressivo esvaziamento de uma classe média devorada pela crise económica, pelo cortejo do desemprego e pela perda do poder de compra. Os apoiantes destes partidos já perderam praticamente tudo o que tinham a perder; só lhes resta a contestação. Votam neles por razões de protesto, embalados por promessas de inversão da espiral de pobreza e da austeridade. Mas estes partidos não apresentam um ideário de rompimento com os partidos do arco do poder. Não propõem uma nova economia nem anunciam uma nova moral ou uma nova forma de viver ou de consumir. São fraturantes, apenas porque são do contra, porque questionam as elites, porque rompem com o estado das coisas e acabam, desta forma, por provocar agitação social e obrigar a ajustamentos.

Não serão ainda estes os movimentos que transportam no seu ideário as sementes para a Transição que o planeta exige e a Humanidade aspira para se regenerar. Nesse aspeto estão mais próximos os partidos ecologistas, resultado da consciência de que existe um choque entre a economia e a sustentabilidade ambiental. Mas estes partidos também não têm uma proposta económica viável, apenas são a expressão de uma vaga crença de que é possível prosperar sem crescimento. E na angústia provocada por um futuro incerto e perigoso, o cidadão comum espera as respostas que tardam em aparecer!

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Assim vai o Mundo

Na aldeia global os acontecimentos sucedem-se vertiginosamente. Trazidas pelos ávidos media, as notícias novas atropelam as velhas e remetem-nas para o esquecimento. Numa semana, deixámos de ser Charlie para passarmos a ser Tsipras. Os comentadores e os fazedores de opinião - mas também os políticos -, perante a angústia provocada pela incerteza do desfecho dos acontecimentos, começam a ficar nervosos e desorientados. O cidadão comum vai-se entretendo nas redes sociais, e fica trocando emails com anedotas e gags, à espera que as coisas aconteçam. Como a nêspera no poema (*) de Mário Henrique Leiria…

A situação na Grécia e na Europa, a prolongada crise da Ucrânia, a guerra do médio Oriente e o preço do crude são alguns sinais preocupantes de um iminente agravar da crise que ameaça o mundo global. O petróleo, caro ou barato, continua a ser o sangue da economia. Os investimentos das grandes empresas petrolíferas estão a ser congelados ou adiados, e isso vai, a breve prazo, trazer consequências gravosas na produção. Os excessos feitos, nas estimativas das reservas e nas previsões de produção, para atrair investidores do shale oil americano, criaram uma bolha de crédito que já está revelar-se tóxico e a necessitar de um urgente bail out. A decisão de baixar o preço do petróleo, acertada pelos dois países que tem capacidade para o fazer - os Estados Unidos e a Arábia Saudita -, é uma arma estratégica de dois bicos que pode provocar efeitos colaterais perversos em muitas economias.

No mundo global, terminada a guerra fria, começa a esboçar-se uma nova ordem mundial. Os EUA, levando a Europa a reboque, aspiram assegurar a liderança do mundo que sairá dessa nova ordem. No tempo mais imediato, dois obstáculos se colocam: a Rússia e o Médio Oriente. Pelas intricadas conexões que os ligam, existe ali uma situação muito complexa. Eleger a Rússia como inimigo a abater - a domesticar, talvez seja o termo mais correto - é um desiderato americano mas não deveria ser uma prioridade europeia. A Rússia, pela sua história e pela sua cultura, faz parte integrante da Europa. Estamos ainda a digerir os restos da queda do muro de Berlim. Convém não esquecer que Rússia foi um aliado do Ocidente contra a Alemanha em duas guerras mundias, e, com 20 milhões de mortos, pagou a fatura mais pesada no último desses conflitos . A unificação alemã voltou a produzir uma Alemanha muito forte e a América não pode deixar que se enamore da Rússia. O resto da Europa, enfraquecida e desorientada, assiste impotente e limita-se a seguir o mais forte.

A Grécia está a revelar-se uma peça que pode assumir um valor estratégico muito importante na luta pelo controlo do Médio Oriente. Por isso, o discurso político começa a sobrepor-se ao discurso económico. A Europa está a confrontar-se com as contradições da sua construção. Na superação dessas contradições joga o seu futuro. E a isso, nós portugueses, não podemos ser indiferentes.
(*) Uma nêspera/estava na cama/ deitada/ muito calada a ver/o que acontecia/chegou a Velha/ e disse/ olha uma nêspera/ e zás comeu-a/ é o que acontece/às nêsperas /que ficam deitadas/ caladas/ a esperar/ o que acontece.       Mário-Henrique Leiria

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

O Dilema Grego

Para quem tem o coração à esquerda, a euforia com que se festejou o resultado das eleições gregas do passado dia 25 de janeiro foi um belo e excitante momento. Viu-se o erguer, como há muito não acontecia, das bandeiras do socialismo, da democracia e da liberdade; mas, para aqueles que já aprenderam as lições da história e entendem o realismo da economia e da política, a vitória do Syriza é vista como uma vaga promessa de uma nova esperança que, não sendo concretizada, poderá transformar-se num pesadelo com amargas consequências para os gregos e para a Europa.

 A importância para Portugal do resultado das eleições na Grécia, e a vitória de Alexis Tsipras, está bem patente na quantidade de opiniões – muito diversificadas e, por vezes, contrárias e contraditórias – que os jornalistas, colunistas e comentadores dos órgãos de comunicação social portugueses têm vindo a produzir desde o dia 25 de janeiro passado. De um modo geral, essas opiniões relevam a potencial gravidade da situação criada e afloram o dilema que a Europa enfrenta, o qual, como todos os dilemas, é gerador de conflitos e fonte de angústia e incerteza.

O dilema resulta da Europa não poder apoiar uma política despesista do Syriza, mas, ao mesmo tempo, não poder deixar a Grécia entregue a si própria. A Grécia tem uma dívida monstruosa, que não vai conseguir pagar. Ora o governo Tsipras está a tomar medidas que vão aumentar o deficit e a dívida. Logo, a Grécia vai continuar a precisar, cada vez mais, de ajuda económica para sobreviver. Mas não é seguro que a Europa queira continuar a ajudar a Grécia. Se a Europa recusar ajudar a Grécia, a Rússia é o único país que tem condições para o fazer. E pode ter interesse em fazê-lo.

Uma Grécia dissonante da UE – e da Nato! – tem interesse estratégico para Vladimir Putin. Situa-se numa zona quente do Globo: próximo do acesso ao Mar Negro e ao Médio Oriente. É, tal como a Turquia, um país da Nato. A Nato é, basicamente, uma aliança entre os EUA e a Europa – que não tem capacidade militar –, aliança que está a ser ativamente reforçada através do discreto (secreto!) TTIP – Aliança Norte Atlântica para o Comércio e Investimento. A Ucrânia já veio dizer que quer abandonar a politica de não alinhamento como primeiro passo para pedir a adesão à Nato. O que, a acontecer, desagrada aos russos, pois colocaria a Nato às portas de Moscovo.

Neste jogo de xadrez, Tsipras já fez os primeiros movimentos numa abertura de quem quer jogar ao ataque: aprovou as primeiras medidas anti-troika; visitou, logo após ganhar as eleições, o Embaixador da Rússia em Atenas; questionou, no seio da UE, as sanções à Rússia. Esperemos pela resposta de Merkel e da Europa. Mas começa a perceber-se que esta pode ser apenas mais uma partida do verdadeiro jogo, bem mais complexo, que se disputa no tabuleiro mundial entre Obama e Putin.

A fragilidade do Syriza decorre de não propor nada de construtivo e não ter nenhum modelo económico alternativo ao da tróika. Rejeita a austeridade, mas fala da necessidade de crescimento da economia; a mesma economia, afinal, que impôs a austeridade. Isto é, Tsipras desconfia dos mercados; mas, para sair da crise acaba por advogar a economia de mercado.

Como chegámos a este dilema é uma questão de fundo. Não vale a pena procurar culpados entre os suspeitos do costume. Atente-se antes nos verdadeiros problemas da espécie humana embrulhada nas contradições de um modelo que já não gera o almejado crescimento que todos desejam. Temo que o jovem Alexis esteja à espera que lhe abram uma porta ao pé de uma parede sem portas.