segunda-feira, 8 de maio de 2017

Nuno Crato e a Educação

A ida de Nuno Crato ao Grémio Literário, no passado dia 5 de maio, para falar no Ciclo “Que Portugal na Europa, que futuro para a União?” só pode ter acontecido por um erro de casting. O orador não disse uma palavra sobre o tema do ciclo que já trouxe àquela sala figuras como Freitas do Amaral, Paulo Rangel ou Francisco Seixas da Costa. Preferiu falar sobre educação, discorrendo longamente sobre o que ele considerou terem sido os bons resultados alcançados no período em que foi ministro. Cometeu a notável proeza de, no seu discurso, nunca ter pronunciado a palavra pedagogia.

O sistema de educação que Nuno Crato defendeu no Grémio é o sistema criado na Revolução Industrial que advoga que se deve encher a cabeça dos alunos com conteúdos programáticos predefinidos e que o sucesso do ensino se mede pela avaliação, a qual consiste em saber até que ponto o aluno conseguiu absorver e é capaz de reproduzir esses conteúdos. Foi o sistema que formatou o ensino ocidental, que deu origem à sala de aula, à lição de 50 minutos e aos exames. E que, hoje, é responsável por um rosário de deprimidos, de angustiados, de stressados e de falhados.

Hoje questiona-se esse modelo. A base de educandos alargou-se às classes mais baixas, diferentes culturas interpenetram-se, as famílias estão mais desestruturadas, as mães trabalham. Muita da preparação que era feita em casa ou nas oficinas dos mestres cabe hoje à Escola. A educação laica suprimiu muitos dos valores, crenças e rituais da educação religiosa de há um século atrás. Os meios de comunicação - sobretudo a internet -, permitem um acesso generalizado a todo o tipo de conteúdos. Nas escolas que seguem o método antigo, os alunos passam a maior parte do tempo a assistir a programas que nada lhes dizem e a ouvir respostas a perguntas que nunca fizeram. Grassa a indisciplina, aumenta a desmotivação dos professores e dos alunos. O que se aprende para a prova rapidamente se esquece, e a aprendizagem para a vida e para a descoberta fica por fazer.
Alguém disse que estamos a educar crianças para o século XXI com professores do século XX e métodos do século XIX. Está a generalizar-se a ideia de que o ensino está desadequado em relação a este novo tempo de grandes transformações. E começa instalar-se nas mentes de alguns pais, de educadores e até de cidadãos comuns a convicção de que urge criar a escola nova. Um pouco por toda a parte, surgem ideias, organizam-se grupos, animam-se debates, propõem-se e discutem-se diferentes modelos sobre como deve ser essa escola nova, quais os conteúdos a incluir nos programas, qual o papel do professor e qual a forma de avaliar os alunos. Até os insuspeitos jesuítas, guardiões de uma longa tradição no ensino, atentos às mudanças, estão a adotar, na Catalunha, novos métodos de educar.

A Internet está a mudar rapidamente - sobretudo nos mais jovens - os padrões de comportamento económico, social e cultural.  Trata-se de uma nova literacia suportada por novos instrumentos que, alterando a nossa forma de viver, nos vai obrigar a mudar a forma de educar. Na antiguidade, os caçadores e os guerreiros eram educados pela tribo e preparados para seguirem as pisadas dos seus antepassados. Era uma educação feita com regras, valores, crenças e rituais.  Mas, hoje, a tribo - que é a tribo global -  é difusa, está mal definida e carente de valores.

Na nossa sociedade - condicionada pela economia de mercado e formatada pela comunicação social -, o único valor  transversal é o dinheiro, e aquilo que lhe está associado: o consumismo, a competição e a ambição pelo poder. E isso reflete-se na educação, também ela orientada para a competição e  para o sucesso profissional. Ora, a incerteza que persiste na economia, a tomada de consciência dos malefícios do crescimento a todo o custo  - a predação dos recursos, o desperdício e a poluição -,  o desemprego e a ausência de valores  já estão a criar nos mais jovens angústia e desorientação. Para cumprir a sua missão de educar, continua a ser essencial que a escola se envolva e seja envolvida pela comunidade. Uma nova sociedade exige, pois, uma nova escola e uma nova escola tem de ser a semente de uma nova sociedade.

Algumas questões fundamentais sobre a educação estiveram ausentes do discurso do matemático Nuno Crato:
  • Qual deve ser a missão da Educação?
  • A quem compete defini-la?
  • A educação deve privilegiar a pessoa ou o cidadão?
  • Qual o papel do professor, e qual a importância da formação dos professores?
  • Qual a importância dos afetos, da empatia, dos relacionamentos sociais no processo educativo?
  • Qual deve ser o papel da família na educação?
  • Qual deve ser o papel da comunidade na educação?
  • Como desenvolver a inteligência emocional nos alunos? 
  • Como educar para a inclusão, para a aceitação das diferenças?
  • Como educar para a sustentabilidade económica e ambiental?
  • O foco da educação deve estar no aluno ou nos conteúdos?
  • Como educar para os valores? A Justiça? A Tolerância? A Generosidade? A Ética?
  • Como educar para a Democracia?
Este tema é central na sociedade atual. O Clube Português de Imprensa, o Centro Nacional de Cultura e o Grémio Literário poderão encontrar nestas perguntas inspiração para um próximo ciclo de conferências. Interesse pelo assunto e especialistas para falar dele não faltarão...

quarta-feira, 3 de maio de 2017

Os Lobos de Rio de Onor

Foram os lobos que me levaram a Rio de Onor. Eu explico: há uns anos atrás, a Sara e o Duarte, dois jovens biólogos fixaram-se em S. Pedro do Rio Seco, a minha aldeia, para estudar o Lobo Ibérico (canis lupus signatus)  no âmbito de um projeto do Grupo Lobo (Associação para a proteção do lobo) que envolvia outras regiões do país. Vinham para uma estadia de curta duração trazidos pelo facto de terem ali aparecido sinais da presença do animal depois de um longo período em que se julgou extinto na região. Na altura, eu estava envolvido na criação a Associação Rio Vivo e depois de ter percebido o interesse dos jovens biólogos em ficar mais algum tempo na aldeia, decidi, através da Fundação Vox Populi, apoiar por mais um ano o seu trabalho. A Sara e o Duarte já abandonaram o concelho de Almeida, e vivem e trabalham hoje em Rio de Onor, onde se dedicam ao estudo e divulgação da fauna local. Foi o convite deles para visitar a aldeia e conhecer o seu trabalho que me levou a Rio de Onor.

No passado mês de Abril, eu e a minha mulher, aproveitando uma deslocação a uma escola de Caminha, viajámos para Rio de Onor, indo por terras da Galiza pela autoestrada espanhola A52 que liga Vigo a Madrid passando por Ourense e Puebla de Sanábria. Nesta última localidade, desviámos por uma estrada de montanha para seguir para o nosso destino. Esperavam-nos a Sara e o Duarte que nos mostraram a pequena aldeia e nos levaram ao único bar/restaurante onde nos esperava um almoço vegetariano de salada e tortilha espanhola servido pela dona do restaurante chamada Maria Preto. Ficámos a saber que em Rio de Onor são todos Pretos ou Prietos conforme o lado da fronteira onde nasceram. Conhecemos a filha de Maria, a bela Sílvia, que estudou em Zamora mas vive agora em Portugal e que - dizem-nos- é uma séria candidata a miss Bragança.

No programa da visita constava um safari para conhecer o terreno envolvente, e tentar avistar alguns animais no seu habitat natural. Nos anos 70, veados e o corços foram introduzidos na vizinha Serra da Culebra em Espanha. Com os terrenos incultos, sem a pressão demográfica dos humanos, os animais espalharam-se pelas áreas adjacentes. As condições proporcionadas pelo terreno com a suas linhas de água, com a vegetação arbustiva e com as pastagens nos coutos ou lameiros permitiram que esses ungulados tivessem proliferado e sejam, hoje, abundantes. Depois dos veados apareceram os javalis. E, finalmente, os lobos. Que são animais furtivos que não tivemos a sorte de ver. Mas vimos as suas pegadas e os seus excrementos. E, com a ajuda dos binóculos e da  perspicácia do Duarte, vimos antílopes, corços e raposas.

Durante séculos, os habitantes de Rio de Onor, forçados pelo isolamento  - esta aldeia, situada no extremo nordeste de Portugal, dista  22 quilómetros de Bragança e 15 quilómetros da localidade espanhola de Puebla de Sanábria -, adoptaram um modo de vida comunitário. Existia um conselho de vizinhos que geria os recursos comuns. Os parcos terrenos agrícolas colados à povoação - a faceira - eram de todos  e não eram de ninguém. Partilhavam-se os fornos comunitários e os rebanhos. Foi o etnólogo Jorge Dias que em meados do século passado estudou  e deu a conhecer, num trabalho publicado em 1953 - "Rio de Onor, comunitarismo agro pastoril" -, a forma de vida comunitária desta curiosa localidade repartida entre dois países.

Há 50 ou 60 anos viveriam aqui mais de 400 pessoas e ainda perduravam os ancestrais costumes. Hoje, Rio de Onor é mais uma aldeia transmontana desertificada de gente, não terá mais de 60 habitantes repartidos entre o povo de cima (espanhol ) e o povo de baixo (português). O comunitarismo perdeu-se para sempre. Rio de Onor deixou de ser uma aldeia isolada, e já faz parte da aldeia global. O automóvel reduziu as distâncias. Os mais velhos estão a desaparecer... e os mais novos já se integram noutras comunidades como o facebook ou o whatsap. As típicas casas tradicionais de Rio de Onor - construídas em xisto e cobertas de lousa - estão a ser reconstruidas. Mas já não se destinam a albergar os vizinhos. Agora destinam-se a fins turísticos, servem para casas de férias ou para fins de semana.

Rio de Onor é uma pequena amostra do hinterland que de um lado e do outro acompanha a raia entre Portugal e a Espanha. É uma zona onde escasseia a gente e são sombrias as perspetivas para os mais jovens.  Olho para este novo ciclo de renovação, possível pela mobilidade do automóvel e pelas estradas e alimentado pelos subsídios, e não lhe vejo sustentabilidade. O maior património de Rio de Onor consistirá na preservação da história de um modo de vida comunitário que poderá servir de exemplo para tempos futuros.